Num post aqui publicado, há algum tempo, dei conta de um possível armário judaico no Baraçal. Numa tarde de verão, do passado mês de Agosto, reencontrei o amigo padre Fernando, da dita freguesia do Baraçal, aproveitando para conversar sobre o assunto.É nesta sequência que aqui dou conta do estudo feito pelo padre Fernando.
ARMÁRIOS-CANTAREIRAS
A cultura portuguesa foi caldeada pela passagem de muitos povos pelo território que, desde meados do século XII (1143), constitui a nação portuguesa. De todas elas saliento duas: romanos e árabes (mouros), particularmente a nível da língua. A influência judaica também foi importante, não tanto pela língua, mas pela economia e pela ciência. Ainda há dias lia num jornal diário a opinião de alguém que afirmava que, tanto a expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal (1759), como a dos judeus pelo rei D. Manuel (1496), foram as duas maiores perdas para Portugal, especialmente a nível da modernidade e do avanço científico e, em parte, estou de acordo.
Muito se tem escrito sobre a presença dos judeus em Portugal e procuram-se por todo o lado vestígios dessa realidade. Apesar da questão religiosa (na Idade Média os judeus foram considerados inimigos dos cristãos porque foram “os que mataram a Cristo”) e da usura que praticavam nos empréstimos de dinheiro, os judeus não somente eram estimados e requisitados pelos reis e príncipes pela sua capacidade para os negócios e para a ciência (físicos e matemáticos) e aceites pela maioria da população (o episódio dramático da igreja de S. Domingos, Lisboa – 1506, é uma excepção).
Nas nossas “Crónicas” já temos falado dos judeus em Portugal e em particular nas terras de Ribacôa, mas hoje resolvi voltar ao tema motivado pela descoberta de um “armário/cantareira” (com dois compartimentos trabalhados em granito de grão fino) na minha aldeia natal, Baraçal. Este tipo de armários é associado por alguns autores (Jorge Martins, etc.) aos cultos judaicos, mas que terão sido empregues apenas para esconder o ritual das candeias do Shabbat (depois de 1496).
É de louvar o interesse de muitas autarquias em preservar e valorizar muitos espaços habitados por judeus e mouros, porque existe uma maior sensibilidade para o património cultural e religioso e também por interesses turísticos, embora nem sempre com devido rigor histórico.
Se a presença de judeus no território português é muito antiga (desde o século XII), em termos históricos termina em 1496 com o decreto de expulsão emitido pelo rei D. Manuel. A partir de 1506, os judeus que aceitaram o baptismo (cristãos-novos) deixaram de estar confinados nas judiarias e misturaram-se com a população cristã. Outro fenómeno que aconteceu, sobretudo com o início da Inquisição, foi a disseminação dos “cristãos-novos” pelas vilas e aldeias (quando antes se fixavam mais nos grandes centros urbanos por causa do comércio e pela proximidade do poder político) onde poderiam passar despercebidos.
Quando é que se deu a diáspora, ou seja, a dispersão dos judeus pela bacia mediterrânica, incluindo a Península Ibérica? Foi depois do ano 70 da era cristã, após a conquista e consequente destruição da cidade de Jerusalém pelos exércitos do imperador romano Tito. Segundo Maria José Ferro (As Judiarias de Portugal, página 19), entre os séculos V e VI, já aqui existiriam algumas comunidades que, com o decorrer dos séculos foram aumentando. Quando o número de judeus era superior à dezena, era criada uma “comuna” ou “aljama”, que tinha como centro religioso e social a “sinagoga”. Com o crescimento das famílias judaicas nas comunas, podia existir mais do que uma judiaria. Havia o Rabi-mor assistido pelos “ouvidores”, delegados nos principais centros judaicos do país: Porto, Torre de Moncorvo, Viseu, Covilhã, Santarém, Évora e Faro. Se em princípios do século XV existiam em Portugal cerca de 30 comunidades e alguns milhares de famílias, no final do século (aquando do decreto de expulsão de D. Manuel), haveria mais de 100 judiarias e talvez trinta mil judeus.
Atendendo à necessidade do bom relacionamento entre a comunidade cristã (maioritária) e a comunidade judaica (minoritária) foram criadas leis próprias. Assim o quarto concílio de Latrão (1215) recomendava uma distinção física no vestuário (sinal exterior identificador: estrela de seis pontas, chapéu frígio ou coifa pontiaguda…). Em Portugal, as Ordenações Afonsinas (século XIII) também legislaram sobre o assunto: os judeus não podiam ter serviçais cristãos, sob pena de perda de património; qualquer judeu convertido ao cristianismo, que retornasse à religião original, podia ser condenado à morte; os judeus não podiam ocupar cargos oficiais se com isto prejudicassem os cristãos. Como já referi a prática do culto judaico nas sinagogas das judiarias deixou de ser autorizado em Portugal a partir do decreto de 1496, de D. Manuel, que impunha uma de duas condições: conversão ao cristianismo (baptismo) ou saída do território. Assim muitos judeus convictos preferiram emigrar para outros países europeus, de preferência para a Flandres e Países Baixos (onde puderam continuar a prática do judaísmo, livremente); os que não saíram receberam o baptismo e passaram a chamar-se “cristãos novos”. Mas o baptismo destes judeus, na sua maior parte, não foi convicto, foi de conveniência e por isso continuaram a praticar a religião judaica, mas às ocultas (dentro de casa). Publicamente, frequentavam a igreja católica, como faziam os cristãos tradicionais (velhos cristãos).
É neste ambiente que surgem os “armários-cantareiras” e as cruzes gravadas nas ombreiras das portas de muitas casas de habitação. Voltando ao exemplo existente numa casa de Baraçal, concelho do Sabugal, que motivou esta minha “Crónica” e que me foi revelado, não por um baraçalense, mas pelo Dr. Júlio Marques, de Vilar Maior, ilustre amigo formado em Filosofia, mas amante e curioso das “coisas” do Património, sou de opinião que “não é um simples armário”, como tantos outros existentes em muitas povoações da Beira interior. Embora este tema não seja inteiramente pacífico, as provas existentes levam-nos a esta conclusão.
Começando pela estrutura da casa: existem todos os indícios de ter sido uma casa de gente rica (a tradição popular fala da casa do “fidalgo” e a última proprietária mantinha um certo mistério em relação à casa, como refere uma das netas) com toda a frontaria em granito aparelhado, varanda (escadaria-balcão) também de pedra aparelhada e torneada com um artístico alpendre a proteger a porta de entrada no 1.º piso; o “armário-cantareira” sendo também duma nobreza e beleza extraordinárias, superior ao de Vilar Maior, não serviria só para guardar objectos de uso doméstico, porque a segunda prateleira, para lá do rebordo artístico, tem ao meio uma cabeça humana com boca e dois olhos e um orifício que coincide com o olho direito. Esta 2.ª prateleira não serviria para a ablução ritual antes da refeição sagrada da Páscoa, “Pessah”? As várias cruzes gravadas na ombreira da porta e numa pedra do “armário” constituem uma outra prova.
Desde o século XIII existem provas da residência de judeus, não só no distrito da Guarda como no Sabugal. O Dr. Jorge Martins fez uma investigação exaustiva sobre várias dezenas de cristãos novos com processos na Inquisição, por denúncia de práticas de “judaísmo”, nos séculos XVII- XVIII, sendo um casal (marido e mulher) de cristãos novos do Baraçal. Percorrendo a zona mais antiga do Baraçal encontramos cerca de uma dezena de cruzes gravadas nas ombreiras (duas muito artísticas estão datadas de 1780 e 1784).
Portanto, posso concluir que o Baraçal, sendo um simples povoado da freguesia e concelho de Vila do Touro, até 1904, ainda hoje conserva vestígios da existência de cristãos novos em séculos passados e não só Belmonte, que desde a minha meninice ouvia falar como terra de judeus (que tinham sangue ruim).
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