Segunda-feira, 25 de Setembro de 2017

Armário Judaico no Baraçal

Num post aqui publicado, há algum tempo, dei conta de um possível armário judaico no Baraçal. Numa tarde de verão, do passado mês de Agosto, reencontrei o amigo padre Fernando, da dita freguesia do Baraçal, aproveitando para conversar sobre o assunto.É nesta sequência que aqui dou conta do estudo feito pelo padre Fernando. 

ARMÁRIOS-CANTAREIRAS

A cultura portuguesa foi caldeada pela passagem de muitos povos pelo território que, desde meados do século XII (1143), constitui a nação portuguesa. De todas elas saliento duas: romanos e árabes (mouros), particularmente a nível da língua. A influência judaica também foi importante, não tanto pela língua, mas pela economia e pela ciência. Ainda há dias lia num jornal diário a opinião de alguém que afirmava que, tanto a expulsão dos jesuítas pelo marquês de Pombal (1759), como a dos judeus pelo rei D. Manuel (1496), foram as duas maiores perdas para Portugal, especialmente a nível da modernidade e do avanço científico e, em parte, estou de acordo.

Muito se tem escrito sobre a presença dos judeus em Portugal e procuram-se por todo o lado vestígios dessa realidade. Apesar da questão religiosa (na Idade Média os judeus foram considerados inimigos dos cristãos porque foram “os que mataram a Cristo”) e da usura que praticavam nos empréstimos de dinheiro, os judeus não somente eram estimados e requisitados pelos reis e príncipes pela sua capacidade para os negócios e para a ciência (físicos e matemáticos) e aceites pela maioria da população (o episódio dramático da igreja de S. Domingos, Lisboa – 1506, é uma excepção).

Nas nossas “Crónicas” já temos falado dos judeus em Portugal e em particular nas terras de Ribacôa, mas hoje resolvi voltar ao tema motivado pela descoberta de um “armário/cantareira” (com dois compartimentos trabalhados em granito de grão fino) na minha aldeia natal, Baraçal. Este tipo de armários é associado por alguns autores (Jorge Martins, etc.) aos cultos judaicos, mas que terão sido empregues apenas para esconder o ritual das candeias do Shabbat (depois de 1496).

É de louvar o interesse de muitas autarquias em preservar e valorizar muitos espaços habitados por judeus e mouros, porque existe uma maior sensibilidade para o património cultural e religioso e também por interesses turísticos, embora nem sempre com devido rigor histórico.

Se a presença de judeus no território português é muito antiga (desde o século XII), em termos históricos termina em 1496 com o decreto de expulsão emitido pelo rei D. Manuel. A partir de 1506, os judeus que aceitaram o baptismo (cristãos-novos) deixaram de estar confinados nas judiarias e misturaram-se com a população cristã. Outro fenómeno que aconteceu, sobretudo com o início da Inquisição, foi a disseminação dos “cristãos-novos” pelas vilas e aldeias (quando antes se fixavam mais nos grandes centros urbanos por causa do comércio e pela proximidade do poder político) onde poderiam passar despercebidos.

Quando é que se deu a diáspora, ou seja, a dispersão dos judeus pela bacia mediterrânica, incluindo a Península Ibérica? Foi depois do ano 70 da era cristã, após a conquista e consequente destruição da cidade de Jerusalém pelos exércitos do imperador romano Tito. Segundo Maria José Ferro (As Judiarias de Portugal, página 19), entre os séculos V e VI, já aqui existiriam algumas comunidades que, com o decorrer dos séculos foram aumentando. Quando o número de judeus era superior à dezena, era criada uma “comuna” ou “aljama”, que tinha como centro religioso e social a “sinagoga”. Com o crescimento das famílias judaicas nas comunas, podia existir mais do que uma judiaria. Havia o Rabi-mor assistido pelos “ouvidores”, delegados nos principais centros judaicos do país: Porto, Torre de Moncorvo, Viseu, Covilhã, Santarém, Évora e Faro. Se em princípios do século XV existiam em Portugal cerca de 30 comunidades e alguns milhares de famílias, no final do século (aquando do decreto de expulsão de D. Manuel), haveria mais de 100 judiarias e talvez trinta mil judeus.

Atendendo à necessidade do bom relacionamento entre a comunidade cristã (maioritária) e a comunidade judaica (minoritária) foram criadas leis próprias. Assim o quarto concílio de Latrão (1215) recomendava uma distinção física no vestuário (sinal exterior identificador: estrela de seis pontas, chapéu frígio ou coifa pontiaguda…). Em Portugal, as Ordenações Afonsinas (século XIII) também legislaram sobre o assunto: os judeus não podiam ter serviçais cristãos, sob pena de perda de património; qualquer judeu convertido ao cristianismo, que retornasse à religião original, podia ser condenado à morte; os judeus não podiam ocupar cargos oficiais se com isto prejudicassem os cristãos. Como já referi a prática do culto judaico nas sinagogas das judiarias deixou de ser autorizado em Portugal a partir do decreto de 1496, de D. Manuel, que impunha uma de duas condições: conversão ao cristianismo (baptismo) ou saída do território. Assim muitos judeus convictos preferiram emigrar para outros países europeus, de preferência para a Flandres e Países Baixos (onde puderam continuar a prática do judaísmo, livremente); os que não saíram receberam o baptismo e passaram a chamar-se “cristãos novos”. Mas o baptismo destes judeus, na sua maior parte, não foi convicto, foi de conveniência e por isso continuaram a praticar a religião judaica, mas às ocultas (dentro de casa). Publicamente, frequentavam a igreja católica, como faziam os cristãos tradicionais (velhos cristãos).

É neste ambiente que surgem os “armários-cantareiras” e as cruzes gravadas nas ombreiras das portas de muitas casas de habitação. Voltando ao exemplo existente numa casa de Baraçal, concelho do Sabugal, que motivou esta minha “Crónica” e que me foi revelado, não por um baraçalense, mas pelo Dr. Júlio Marques, de Vilar Maior, ilustre amigo formado em Filosofia, mas amante e curioso das “coisas” do Património, sou de opinião que “não é um simples armário”, como tantos outros existentes em muitas povoações da Beira interior. Embora este tema não seja inteiramente pacífico, as provas existentes levam-nos a esta conclusão.

Começando pela estrutura da casa: existem todos os indícios de ter sido uma casa de gente rica (a tradição popular fala da casa do “fidalgo” e a última proprietária mantinha um certo mistério em relação à casa, como refere uma das netas) com toda a frontaria em granito aparelhado, varanda (escadaria-balcão) também de pedra aparelhada e torneada com um artístico alpendre a proteger a porta de entrada no 1.º piso; o “armário-cantareira” sendo também duma nobreza e beleza extraordinárias, superior ao de Vilar Maior, não serviria só para guardar objectos de uso doméstico, porque a segunda prateleira, para lá do rebordo artístico, tem ao meio uma cabeça humana com boca e dois olhos e um orifício que coincide com o olho direito. Esta 2.ª prateleira não serviria para a ablução ritual antes da refeição sagrada da Páscoa, “Pessah”? As várias cruzes gravadas na ombreira da porta e numa pedra do “armário” constituem uma outra prova.

Desde o século XIII existem provas da residência de judeus, não só no distrito da Guarda como no Sabugal. O Dr. Jorge Martins fez uma investigação exaustiva sobre várias dezenas de cristãos novos com processos na Inquisição, por denúncia de práticas de “judaísmo”, nos séculos XVII- XVIII, sendo um casal (marido e mulher) de cristãos novos do Baraçal. Percorrendo a zona mais antiga do Baraçal encontramos cerca de uma dezena de cruzes gravadas nas ombreiras (duas muito artísticas estão datadas de 1780 e 1784).

Portanto, posso concluir que o Baraçal, sendo um simples povoado da freguesia e concelho de Vila do Touro, até 1904, ainda hoje conserva vestígios da existência de cristãos novos em séculos passados e não só Belmonte, que desde a minha meninice ouvia falar como terra de judeus (que tinham sangue ruim).

 

publicado por julmar às 18:30
link | comentar | favorito

.Memórias de Vilar Maior, minha terra minha gente

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


.posts recentes

. Vilar Maior, minha terra ...

. Família Silva Marques

. Emigração, Champigny-sur-...

. Para recordar - Confrater...

. Requiescat, Isabel da Cun...

. Em memória do ti Zé da Cr...

. Requiescat in pace, Fenan...

. Paisagem Zoológica da Vil...

. Gente da Minha terra (192...

. Requiescat in pace, José ...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

. Novembro 2006

. Outubro 2006

. Setembro 2006

. Agosto 2006

.links

.participar

. participe, leia, divulgue, opine

blogs SAPO

.subscrever feeds