Na generalidade das casas dos nossos lavradores meões, este almoço é a refeição mais farta e variada de toda a roda do ano, à frente mesmo da de Terça-Feira Gorda e da servida na festa do orago
Tudo começa com um panelão de caldo de massa com gravanços, no qual fervilharam, desde a alva, meio chouriço nalgueiro e um forte naco de presunto velho, contributo do porco do último ano para as celebrações do sucessor.
Prato de grande substância vem logo a seguir e não sei de cozido à portuguesa ou andalusa, á pirinaica ou apenina, a de Parma ou das Ardenas, que lhe leve vantagem.
Ás rodelas do chouriço e lascas de presunto, cozidos para a água do caldo, juntavam-se pedaços da parte carnuda do torax, zona furada pelo facalhão do matachim e por isso tornada mais saborosa, talhadas de morcela e farinheira, trazidas por comadre mais abelhuda que se antecipara na matação. E tudo a acompanhar as batatas das três itas—terra granita, água granita e caganita, cozidas em água enriquecida a loiro, e as couves da horta que o gelo adoçara e fizera tenras.
O estomago já começava a ficar aconchegado. Mas havia espaço para muito mais, já que para jejum e abstinência não faltarão dias e dias na longa roda do ano, a braços com o timão e a enxada, a gadanha e o mangual, o ferro e o alvião.
Por isso, o guisado de figado, prato essencial e benvindo, desaparecia num ápice-
Mas os guisados continuam de acordo com as posses e os áabitos de vida do anfitrião – badana velha, se também se criava gado miúdo, coelho bravo nos caçarretas ou manso em cidadão mais pacato.
O arroz de lebre ou borrachos, a perdiz na púcara ou as fritadas de tordos ou estorninhos, isso já eram luxos de morgados
E tudo, tudo, com acompahamento quase ao minuto com o gramines da terra, um vinho esperto e seivoso, pouco alcoólico mas que tinha mais virtude que os livros santos.
E que sendo de duas mãos, uma no copo, outra na portinhola das calças, estilava sem destilar.
Que aquele acrescento obtido por Dom Dinis, o Lavrador, para o reino de Portugal, à custa das imensidades de Castela, se chama RIBACOA todo o sabugalense sabe. Como consabido é igualmente que o Coa—ou a Coa, pois há muito quem feminize a palavra, por se achar que, pelo limitado do caudal, tem mais de ribeiro que de rio—nasce no limite dos Foios, mesmo junto á Raia e que, à semelhança da Senhora do Almurtão, por não querer ser Castelhana, virou costas a Castela e correu para Oriente, vindo a afogar-se no Douro, na zona das amendoeiras—terra quente do Norte, junto de Vila Nova dos Judeus, nome deturpado do legítimo que é Vila Nova de Foz Coa, que no povo há quem chame de faz Coa. Devo dizer que nunca entendi os anátemas apostos àquela ridente povoação que nunca teve mais gente de raça semita ou somítica do que qualquer outra das existentes em Portugal, mas certamente sempre contou muito menos do que Belmonte, Trancoso ou mesmo a Guarda, mas a verdade é que as trovas circulam: Vila Nova,vila Nova Vila Nova de Fozcoa Se não fossem os judeus Vila Nova era boa Ou ainda mais impressivamente: Vila Nova,Vila Nova, Vila Nova dos judeus O que fizestes a Cristo Haveis de fazê-lo a Deus Não terá sido para isto que o Coa virou costas a Castela. Mas os seus irmãos do berço de água – o Agueda e o Erges, que inicialmente ficaram por Espanha também acabaram por aportar terras lusas. Á guisa das gotas que acabaram na Meimoa ou na Basargueda. O Coa, ou na sua forma actual ou na latina de Cuda, ou nas alterações que a semântica impõe, está presente nos nomes de povoações, dentro e fora da sua bacia hidrográfica—ou seja nas regiões proprimente cudanas, como no CISCOA ou TRANSCOA Há muitas povoações que ostentam orgulhosamente o título, desde anexas Arrifana do Coa ou Carvalhal do Coa, a freguesias, v g, Rapoula do Coa, ou Seixo do Coa. Noutras, a raíz está lá. Mas só uma pessoa versada nesta coisa das trasformações que as palavras sofrem dará com ela: O nome de Quadrasais transforma o CUDA, nome latino do Coa, como já acima deixámos expresso, em QUA. E Trancoso é — era — o primeiro centro militar importante passado o COA, ficando portanto no Transcoa ou Além-Coa.
Nasceram em Vilar Maior, mas casaram e morreram na Bismula, onde se encontram sepultados e onde residem ainda seus descendentes em primeiro grau, dois irmão, cujos improvisos, acompanhando à concertina o fado menor, se tornaram famosos em toda aquela corda de povos que vai, de norte a sul, de Poço Velho aos Foios, e de levante ao ocaso, das Batocas ao Terreiro das Bruxas.
Refiro-me, escalando-os por ordem de idade, a José Bárbara Leitão e Joaquim Bárbara Leitão, conhecidos depois do casamento, respectivamente por Zé da Rita e Joaquim da Prazeres
Físicamente eram de estatura muito acima da média, a tenderem para o agigantado.
Para além de agricultarem os seus próprios agros, dedicaram-se também a pequenos negócios, o que os tornava mais assíduos em feiras e arraiais do que a generalidade dos seus coevos.
Senhores de vozes agradavelmente sonoras, dominavam bem as regras da quadração e as técnicas gerais da versificação em redondilha menor.
Mais de autiva que de leitura, conheciam os passos essenciais das Sagradas Escrituras, da História Pátria, da Europeia, da Mundial, até...
Tinham, assim, matéria para verbalmente se digladiarem horas a fio, despertando a curiosidade e mantendo o interesse de auditórios que iam engrossando à medida que a disputa ia subindo de tom.
Pergunta requer pergunta
Agora pergunto eu....
Primeiro haviam sido os cumprimentos.
Deus te salve, cantador
Deus te cubra de benção
Mais a todas as pessoas
Que neste lugar estão
E a tudo quanto pertence
a humana geração....
Com a resposta
Deus te salve a ti e a mim
Mais ao povo aqui presente
Depois, o despique
Hei-de te fazer andar
Como a roda de um sarilho
Para de seguida ouvir
Tu não te exaltes comigo
Que uma lição não ma dás
Mas inda que tu ma desses
Sempre eras um bom rapaz
As ameças subiam de tom
Se és galo arrebita a crista
Se és frango larga a pesnuge
Se vens despicar comigo
Calça os tamancos e fuge
.
Vai haver tiros, temiam uns
No menos, naifa ou estadulhada, opinava-se
Mas vinha o abraço precedido da declaracão
Cantador és meu irmão
Não só de Eva mais de Adão
Como aquele que ali vai
Mas sim de mãe mais de pai...
Envio-lhe a pagina da frente do jornal LUSO AMERICANO editado nos Estados Unidos. Refere-se aos acontecimentos do desastre que houve
na nossa terra ha 4O anos.
As pessoas estao longe, mas nao estao adormecidas. Vao vendo umas noticias boas, outras nem tanto...
Se entender que deve dar algum relevo à noticia, faz parte da sua opiniao.
Esperamos sempre por boas noticias.
Um abraco.
Ze Valente
Cinco mortos
e sete feridos
PELA,'EXPLOSÃO DE FOGO DE ARTIFÍCIO
EM VILAR MAIOR (SABUGAL)
Momentos de pavor viveram-se, no domingo pela manhã,
em Vilar Maior, no concelho de Sabugal', quando explodiu gran.
de quantidade de fogo' de artifício armazenado num anexo da
Igreja da Misericórdia. O templo ficou completamente destruído e
os pedaços das paredes e do telhado, atirados à, distancia,
mataram cinco pessoas e feriram de gravidade outras sete, enquanto
dezenas de homens, mulheres- e crianças sofreram escoriaçoes
quando amedrontadas fugiram e se atropelaram no
largo principal da povoação, no inicio de uma das festividades
mais queridas da população: o Senhor dos Aflitos.
O pavor que viveu a gente de Vilar Maior reflectiu-se por
toda aquela. região raiana. De Sabugal, da Guarda, da -Covilhã,
de Peanamacor e de outras cidades - vilas partiram socorros, pois
que as corporações de bombeiros mobilizaram todos os seus
efectivos humanos e técnicos para acudirem a uma tragédia
que enlutou aquela gente e causou a maior consternação.
A alegria de uma festa que teria música e foguetes, seguiram-
se gritos de dor, de desespero e de saudade. Um dia que
seria, por tradição de muitos anos, de confraternização e de
contentamento entre os naturais daquela localidade e os seus
conterraneos emigrados, transformou-se, assim, num dia de trisreza geral
No ano de 1912 foram registados 33 nascimentos na Vila que constituirá a média de nascimentos no primeiro quartel do século XX.
Verdade que a mortalidade infantil era muito grande, de qualquer forma inferior à que se viria a registar no segundo quartel do mesmo século.
Nesse mesmo ano de 1912 registaram-se 23 óbitos. A pessoa mais velha morreu com 84 anos; a segunda pessoa mais velha morreu com 60 anos; 13 pessoas morreram com menos de 3anos de idade.
A vida não era fácil!
Alice de Lurdes |
Duarte, José |
Dias, Joaquina |
Álvaro |
Lourenço, António |
Teresa, Lucrécia |
Ana |
Gata, António |
Cruz, Maria Alves da |
Ana |
Proença, Fernando |
Cerdeira, Maria |
António |
Fernandes, Francisco |
Lourença, Maria |
António |
Fernandes, Augusta |
Laiginha, Justina |
António |
Silva, José Martins da |
Augusta, Isabel |
António |
Gil, José Júlio |
Ferreira, Isabel Maria |
António |
Gata, João António |
Esperança, Maria Neves |
António |
Proença, José Bernardo |
Anjos, Ana dos |
António |
Fernandes, Joaquim |
Lavajo, Aurora |
António |
Gata, João António |
Esperança, Maria Neves |
Aurélia |
Prata, José |
Augusta, Felismina |
Filipe |
Badana, Alexandre |
Dias, Rosália Fonseca |
Francisco |
Poio, António |
Alves, Isabel |
Francisco |
Fernandes, Manuel |
Proença, Valentina |
Hermenegildo |
Cruz, José da |
Valente, Antónia |
Isabel |
Silva, Henrique |
Alves, Emília |
João |
Marques, Manuel |
Monteira, Joaquina |
João |
Fernandes, José |
Conceição, Elvira |
Joaquim |
André, Manuel |
Lavajo, Isabel |
José |
Cunha, Manuel Martins |
Teresa, Isabel |
José |
Barreira, Joaquim |
Ferreira, Maria |
José |
Valente, Manuel |
Cruz, Isabel da |
José |
Poio, João |
Jesus, Conceição de |
Josefina |
Valério, Joaquim |
Soares, Maria Teresa |
Júlio |
Palos, José |
Leopoldina, Maria |
Manuel |
Serrano, António |
Soares, Rosália |
Maria |
Gonzaga, Álvaro José |
Valente, Emília |
Maria |
Bárbara, José |
Leitão, Luísa Afonso |
Patrocínia |
Ramos, António Tiago |
Ferreira, Delfina Augusta |
Utelinda |
Cunha, José |
Joaquina, Ana |
Virgínia |
Pedro, Augusto |
Osório, Maria Chamusca |
Sou velho, muito velho. Não porque ande dobrado com o peso dos anos mas por causa da velocidade a que a vida corre sendo que o ponto donde parti se encontra muito longe. Sou do tempo da pedra, de uma pedra que eu metia na bolsa e levava para a escola. Por essa pedra passavam números e letras que se apagavam para, a partir da pena, darem lugar a outros números e letras até ficarem gravados em mim. E ficaram. Sou do tempo em que só havia a minha aldeia como mundo real e para além dela a imaginação e a fantasia.
Hoje nem há aldeias, nem lugares. Há sites e sítios de ninguém. Uma aldeia é um lugar feito de lugares. Não sei quando terei passado pela primeira vez na Rua de Cima. Hoje, reparando bem nela, parece-me uma rua mais importante que maioria das outras ruas porque dava para o Largo do Pelourinho e porque na pequena colina se erguia a casa da torre na parte mais alta da parte mais baixa da vila. Casa brasonada (brasão que a inveja ou a cobiça, ao a rivalidade ou todas juntas levaram para outros senhorios) de um tão rico senhor que, de nome Luís de Bastos, o povo o alcunhou de Luís de Gastos. As ferraduras das suas montadas eram de oiro e se, perdida uma, alguém a encontrasse e a não entregasse teria, como pena, cortada uma das mãos. Provável centro de homiziados para desbravamento dos mortórios do Cerrado e acrescento da riqueza e glória do senhorio. Aqui era o novo centro de poder. A casa possuía um grande logradouro que tinha como átrio um vasto espaço - O Curral Grande. No centro havia uma árvore tão grande que ainda hoje não consigo ver nenhuma maior - uma amoreira onde o povo todo se abastecia de amoras. Até a minha avó Joaquina, ao tempo delas, me dizia: - Ó Júlio, vai-me lá colher um pucarinho de amoras! Esta era uma árvore multissecular, talvez do tempo em que os reis incentivavam a sericultura e mandavam cuidar da alimentação do seu grande obreiro - o bicho da seda. Cultura que a minha avó Zabel desenvolvia a par da arte de latoaria. Na Rua de Cima quase todas as casas eram de dois pisos, sendo que as confinantes com a Rua de Baixo ficam térreas na parte de habitação. Por aqui passavam sempre as procissões importantes dos personagens celestiais (os Passos, as Igrejas, a Páscoa, o Senhor dos Aflitos). Como todas as ruas era cheia de gentes e animais, rua de lavradores também. Havia dum lado, no início, a casa do ti Francisco Pepina casado com a ti Maria Augusta que cozia e vendia pão aos que pão não colhiam; a ti Mariana Ferreira de porte alto, viúva e mãe de duas raparigas altas como ela; ali, em frente, a casa do Zé Simões, com uso continuado depois pela viúva Toninha! Seguia-se o ti Joaquim Alves, de alcunha médico, meu tio avô por casamento com a tia Ana Silva, (fiel companheira da burra que não montava e a que conduzia pela rédea como se fugida de Herodes caminhasse para um qualquer Egipto para os lados do Carvalhal), e que exercera a profissão de Guarda Fiscal que, conta-se, teve de abandonar pelo medo de atravessar cursos de água tais como pontões e poldras, com sorte para os contrabandistas que assim lhe podiam fazer manguitos da outra margem. Por isso, se lhe partia o coração com os maus tratos que davam aos burros quando estes se recusavam a atravessar estes obstáculos. Se para alguns a vida é uma tragédia, para ele era uma comédia mesmos nos seus momentos trágicos. E não perdia a oportunidade de no Carnaval pegar nos cambos ( balança de dois pratos) e, saco sortido de cornos, os ir vender, ao arrátel, pelas ruas dos outros, aos homens que diziam deles não carecer. rematando: - Pois, então, muito boa tarde! Está vossemecê muito bem servido! E assim, combinava, em dose excessiva, vinho, tabaco e zombaria. Mais adiante, vivia o ti Manel, alcunhado de Cabeças, criado do senhor José Ribeiro a quem bem serviu durante longos anos no ofício de lavrador. Em frente é a casa do Fernando Carriço que alteando-a, a partir da Rua de Baixo, lhe deu entrada para a Rua de Cima. A mãe, a ti Filomena Moleira, repartia o tempo pela casa e pelo moinho, sito ao Pinguelo e pelo caminho entre eles percorrido, vezes sem conta, com grão para lá e farinha para cá. Moleira de profissão assim fugia à condenação bíblica, na falta de homem, de ter de ganhar o pão com o suor do rosto, acumulando-a à dor de parir, semeando-o e tratando-o mas a quem seria injusto aplicar a má fama que cai sobre os moleiros - "A fio rouba o moleiro e mais dão-lhe o pão" ou "muda de moleiro que não mudas de ladrão". A seguir uma das maiores casas da vila que foi propriedade do sr Alexandre Araújo um dos maiores proprietários e que uma extensa família e hábitos de consumo inadequados levaram à venda de quase tudo ( bem que este homem merecia um longo capítulo) e também desta casa que duas famílias passaram a habitar. Uma delas é o ti Fernando Cerdeira (olá, ti Fernando, como passa?) que, numa viuvez já longa ( sim aqui viveu a ti Ester), vai para os noventa anos, rijo e valente e cujos filhos ausentes ( a Céu, o Tó, o Manel, a Leta) aqui vêm por mor do ti Fernando e porque aqui enraizaram tão fortemente que aqui regressarão sempre.
Na outra metade da casa morou o ti Aurélio Simões casado com a senhora Marquinhas (noutro sítio havemos de falar das Marquinhas) Ferreira. Aqui regressaram após a reforma de guarda, republicano talvez, do ti Aurélio que, prestando serviço em Fornos de Algodres, daria o apelido de fornos aos filhos (Lurdinhas, o Zé, o António, o Mário ) que se repartiram por terras de Portugal - Lisboa, Cartaxo - e estrangeiro - França, Estados Unidos da América. E a casa lá está de pé, solidamente, resistindo à inclemência do tempo, ganhando musgo, com os vasos, que foram de flores, esquecidos e desmaiados na cor, a assomar para a rua sem futuro.
As casas confinam com o Cerrado. Assim é com a casa do ti Zé Romão e da ti Maria Zorra de genealogia obscura (para mim). Ele mais alto que o normal e ela mais pequena do que o normal, haveriam de gerar o Manel, Romão da parte do pai e Zorro da parte da mãe que foi crescendo sustentado no leite de cabra e no pão da Almedilha. E só dei por ele na escola do tempo da pedra preta. E da professora que nunca ouvira falar em dislexia e que cuidava que tudo se resolvia à reguada. É assim que lembro o Manel: a levar reguadas que lhe tornaram as mãos mais duras que a própria madeira da régua até ao dia que ou por velhice, ou excesso de uso ou por sortilégio das mãos untadas de alho a régua se dividiu em duas nas mãos do Manel. Também o lembro de uma vez que me levou aos Labaços na égua e do tombo que demos; e lembro-me dele quando chegaram os motores de rega e, quando avariavam, todos chamavam o Manel. O Manel não aprendia na escola mas era um engenhocas como não havia. Depois, foi como todos os outros para França e a mecânica automóvel deixou de ter segredo para ele que tinha os carros que quisesse em alguns minutos. Até trouxe um Mercedes que, serrado o tejadilho o transportava até aos Vales onde estará ainda debaixo da cerejeira, se ainda existe. O Manel desapareceu, ninguém sabe se está vivo ou morto. Mas o Manel existiu mesmo. Um dia, quando os dias não contarem, depois da ressurreição dos mortos juntarei o Manel mais a professora que dava reguadas, e a própria régua inteira para conversarmos sobre o assunto.
A ti Zorra, Zorrinha, assim lhe chamavam às vezes mais pela estatura do que por carinho, deu origem a um provérbio local aplicado a situações em que o impossível tem de ceder. Contado em tons muito variados, a cena é, mais ou menos, assim: A ti Maria Zorra tinha a incumbência diária de, ao fim do dia, ordenhar as cabras. Não havia electricidade e na obscuridade da corte ou cortada por ténue luz de candeia, dizendo alguns que jà estaria com uma pinguita a mais, a Zorrinha foi ordenhando as cabras e, às tantas, agarrou-se aos testículos do bode com igual procedimento, ao que o bicho começou a berrar, sem que ela desistisse do intento, clamando: - Nem mé, nem desmé! Hás-de dar meio litro como as mais! Assim se tecia a cultura e o viver das gentes numa união indissolúvel entre o cuidar dos gados e das terras e o caldear do pensar e do sentir.
Confinava com a casa do Manel Zorro a casa restaurada, propriedade de Carlos Duarte Valério e que, por ouvir, terá sido do ti Valério com profissão de sapateiro. Nela viveu uma senhora que encontrou o amor da sua vida, não sei lá por onde, o Ti Aguardente (há-de ter um nome de cristão mas porque este lhe era tão adequado, ninguém lembra o da pia baptismal), porque no âmbito das bebidas alcoólicas era a aguardente a que mais apreciava, independentemente da estação do ano, do dia da semana ou da hora do dia. Não na religião, não na metafísica era na aguardente que encontrava o sentido da existência e se lhe fosse dado filosofar um pouco haveria de defender que a aguardente era o elemento primordial de que todas as coisas são feitas. Seguia-se a casa da ti Metildes Monteira ( nos livros - Matilde Monteiro), minha parenta, por via da minha avó paterna, viúva de Francisco Cerdeira lavrador com piara de gado como quase todos os lavradores que na impossibilidade de terem criados faziam filhos que passavam das tetas da mãe para as tetas das cabras que os biberões só viriam quando já não havia lavradores assim. Como se Bertholt Bretch por aqui tivesse passado, ou porque o mundo será todo muito igual por todo lado:
"O Lavrador trata da terra
Mantém em forma as vacas,
paga impostos
Faz filhos para não ter criados e
Depende do preço do leite"
Mais tarde, os filhos, à parte a Júlia, mestres na arte do pastoreio e da rabiça do arado (o Zé, o João, o Manel), irão a salto ( curiosa expressão) para França e serão promovidos a ajudantes de maçons.
Paredes meias vivia a ti Maria Dias, mais conhecida por Gidória nome de Baptismo de sua mãe. Viúva de Bernardo, identificação que legou aos filhos: o António, o Zé, o Florêncio, o Joaquim, todos Bernardo. A ti Maria Gidória dividia o tempo, do estio, nas regas do Chão dos Vales e da Veiga da Pontaguarda. É sobretudo daqui que dela guardo memória: ela da margem direita e o ti João Marques da margem esquerda. Ao tac-tac da nora dela respondia o tac-tac da nora dele durante manhãs inteiras, acompanhados do tac-tac da nora do ti António Lucrécio que um comentador inspirado do blog, lembrou assim:
" Ó alcatruzes da nora
Inertes sem honra ou glória
Pergunto eu sem demora
Por notícias da ti 'Gidória'
E respondei-me sem rebuço
O que é feito do Galucho"
No mesmo correr de casas morava o ti Xico Cunha e a ti Justina Cerdeira (bem que a rua de Cima podia ter o topónimo Rua dos Cerdeiras) cuja prole rivalizava em membros com a do ti João Marques. Por isso, tinha uma grande piara de gado, mais meia dúzia de cabra, mais um marrano, número indeterminado de pitas, um cão daqueles que traziam uma coleira de picos ao pescoço que mais do que para se defender dos lobos servia para se defender dos outros cães. E, em vez de um burro, dois burros para os pôr à canga e fazer inveja aos lavradores com junta de vacas. Feitas as contas, com mais um burro que os lavradores não precisava de lameiros, nem de nabal. Estrutura mais leve e flexível do que a do lavrador, propriamente dito, pesados os prós e os contras talvez ficasse a ganhar.Coisas que não se aprendiam na universidade. Terminava a rua de cima, no seu correr de casas do lado esquerdo com a casa do ti António Rasteiro, casado com a tia Ana Prata. Só os dois, que filhos não tiveram, cuidavam de uma junta de vacas e de uma grande piara de gado até seguir, como quase todos o caminho de França. Depois enviuvou. Para além das terras que tinha comprou a horta da ti Esperança (bela propriedade!) que continua a cultivar com os noventa anos a baterem à porta, a solidão a pesar... e recordações contadas vezes sem conta como se fosse sempre a primeira vez: 'ah, Júlio se me agarro no tempo de sê pai! Aquilo é que era um homem!' Depois, irrompia pelo Manel que guardava o gado, pela lavra das terras, pelo agadanhar do feno, pelas malhas como tratasse de uma epopeia que urgia salvar. Depois havia de recuar até ao tempo da tropa em Lisboa e das boas graças em que caíra nos seus superiores que lhe permitia interceder a favor dos seus conterrâneos, tropas também do ramo da cavalaria. Esta era a Rua de Cima dos anos cinquenta e sessenta do século passado apinhada de gente que tinha de conquistar cada dia de vida. Neste Inverno do ano de 2012, aqui nesta rua vive só o Ti Fernando Cerdeira e uma filha do ti João Bárbara que, depois e uma vida profissional no Porto aqui estabeleceu residência permanente e só. E o cão, fiel amigo. Talvez por lá se encontre o parente Zé Silva que passa o ano a ansiar pelos dias da festa para bailar, bailar, bailar. Bailar sem par, bailar só. Até que o Verão chegue. Só
Os reis
Ó da casa, nobre gente,
Escutai e ouvireis
Das partes do oriente
São chegados os três reis
Adorar o deus menino
Alto deus omnipotente
Antes das culpas de Adão
Rezavam as profecias
Que havia de vir ao mundo
O verdadeiro messias
Chegado aquele tempo
Que era o determinado
Nasceu a mais linda flor
Naquele jardim encantado
Naquela noite ditosa
Nasceu o verbo divino
Das entranhas de Maria
Sempre virgem e formosa
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça
Pariu e ficou donzela
Maria cheia de graça
E mandou o padre eterno
De poder omnipotente
Inspirar o coração
Dos três reis do oriente
Eles que já esperavam
Por aquele grande amor
Em ver que era nascido
O monarca superior
Como humildes vassalos
Se puseram ao dispor
Chegaram á corte de Herodes
Perguntaram de repente
Aonde era nascido
O monarca omnipotente
Tem Herodes em seu peito
Uns desejos bem diferentes
Enchacar o seu cutelo
No sangue dos inocentes
Herodes como malvado
Como perverso assassino
Aos santos reis ensinava
Às avessas o caminho
Mas deus que estava no céu
A ver este desatino
Mandou a estrela da guia
Que lhe ensinasse o caminho
Guiados pela estrela
Foram ter logo a Belém
Adorar o deus menino
Que nasceu pra nosso bem
A estrela se pousou
Em cima duma cabana
Onde todos adoraram
A Jesus neto de Ana
A cabana era pequena
Não cabiam todos três
Adoraram o menino
Cada qual á sua vez
Os três reis lhe ofereceram
Ouro, mirra e incenso
Não lhe ofereceram mais nada
Porque era o deus imenso
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