É um regalo na vida
À beira da água morar
Quem tem sede vai beber
Quem tem calma vai nadar
Assim foi enquanto a água era uma graça da natureza. Já vimos que o assentamento dos humanos tinha em conta esse recurso vital cuja aproveitamento implicava toda uma engenharia hidráulica assente na necessidade, na experiência e no saber acumulado ao longo de gerações. A água, mais que um recurso natural de sustentação da vida dos corpos, é um elemento fundamental em todas as liturgias religiosas: sem água não há purificação e as almas impuras não têm salvação. Na Terra, muitas questões tribunalícias tinham como objeto dirimir direitos de acesso à água e, quantas vezes, prescindindo do direito, uma sacholada punha termo ao oponente. Ao contrário do sol que, como soi dizer-se, quando nasce é para todos, a água quando nasce é mais para uns do que para outros. Com efeito, o que torna uma propriedade melhor que outra é a existência de uma nascente e essas eram dos ricos. Na maior parte dos casos, a casa residencial, quase sempre com algum terreno, tinha um poço de abastecimento (seja a casa dos Pessanhas, dos Rebochos, dos Gatas, dos Araújos, entre outras). Depois havia os poços públicos, um situado junto frente ao Pio, na Praça, e que está tapado desde que foi feito o Chafariz; outro ao cimo da Quelha que passou a designar-se Rua José Diamantino dos Santos quando foi calcetada e que deu sumiço ao referido poço - o poço do Açougue. Restam o poço do Largo do Senhor dos Aflitos e o poço da Ponte, este com mais características de fonte de mergulho. A água destes poços não era aconselhável para beber. Ter água em casa para fazer as viandas dos animais, a preparação dos alimentos, para lavar a loiça (ainda que pouca), para as pessoas se lavarem, e, sobretudo, para beber, ainda que essencial, não era fácil. A Fonte Velha ( os entendidos que disputem se é romana ou românica), além de ficar longe do povoado terá deixado de ser suficiente, pelo que um pouco mais acima e mais próximo, na idade moderna, fundaram e construíram a Fonte Nova. No mesmo andamento, cerca de duzentos metros mais próxima, encontrava-se a Mina mas conta-se que era preciso apanhar a água com um copo, ás vezes, esperando até o poder encher. Haveria também uma fonte na margem direita do Cesarão, frente ao Poço da Andorinha! A fonte da Talisca. Haveria uma outra fonte situada pelo largo do Pelourinho. No primeiro quartel do século XX, rondando o número de habitantes entre a 700 e oitocentos o abastecimento de água era uma fonte de problemas. Se no Inverno todos os poços e fontes referidos a tinham em abundância, a situação no Verão era aflitiva para o renovo que não se criava, para os animais e para as pessoas que tinham de cuidar de si cuidando daqueles. Levantar-se bem cedo era uma certeza de encontrar a fonte cheia e limpa, mas quando todos pensam o mesmo ... Por vezes, levava-se a vasilha ( o cântaro de barro, a lata ou o regador, o balde da rega) que era mais um peso a acrescentar a outros que do campo se traziam. Por vezes, os proprietários das melhores fontes ou poços ficavam tão aborrecidos com o excesso de gente que ia buscar água para beber que lhe deitavam estrume para a tornar imprópria. Ter água em casa era uma incumbência das mulheres, sobretudo das solteiras, para quem poderia ter os seus encantos, pois desde a poesia trovadoresca que a ida à fonte é um tema inspirativo para os poetas, na probabilidade ou certeza de encontrar o amado, fora da alçada parental. Era também um tema renascentista que não escapou à pena de Camões:
LIANOR
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura;
Vai formosa e não segura.
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata.
Sainho de chamalote; Traz a vasquinha de cote.
Mais branca que a neve pura;
Vai formosa e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro o trançado,
Fita de cõr de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta;
Chove nela graça tanta
Que dá graça a formesura;
Vai formosa e não segura.
A problemática procura de água não deixava de ter os seus encantos, bem diferente dos encantos de hoje
Lê-se num livro antigo
Se quisermos buscar as raízes mais fundas do mercador, temos de as procurar na própria oficina, pois a primeira tenda foram os tabuleiros desta.
Aliás o tabuleiro era uma das portas da oficina e foi o primeiro balcão do artifice-mercador, isto é do mesteiral que não produzia para as suas necessidades de consumo.
O homem das profissões produzia e vendia directamente ao público a sua manufactura.
Depois, quando a produção fazia lote, remédio não tinha o oficial senão pegar na sua manufactura, ageitá-la à carga da sua azémula, aparelhar esta e meter-se a caminho.
Tomar esta decisão nos tempos medievos, não era empreendimento para todos.
Os menos afoitos ver-se-iam na contigência de entregar aos mais temerários a sua própria fabricação.
Destarte se iam firmando dois tipos de mercadores incipientes . O mestre de oficio que vendia ao tabuleiro da oficina e o outro, que mais resoluto, se fazia para as andanças de ruas, mercados e feiras, enfim para fora de portas, onde quer que adregasse topar freguês.
Eram estes últimos os mercadores erradios, descritos numa carta régia ainda em latim como mercatores qui de locum as locum merces et necessaria deferse consuevernunt - mercadores que levam de lugar para lugar as coisas necessárias às vidas dos povos
Eis como no livro Os Mesteres se nos apresentam alguns desses curiosos espécimes.
Da sua oficina de ouriveseiro - ao Serralho - o apartado bairro dos judeus - ergue-se no alvor da madrugada, Isaac Marcos, aprestando-se para uma jornada mercantil.
A estranha figura do filho de Israel, com a cabeça sumida no albornoz, olhar de fuinha, nariz adunco, barbicha de bode, vai escarranchado em besta muar, arriada à mourisca.
A sua carga especiosa - de pratas lavradas e mimos de lapidaria - vai acomodada nos recessos do albardão, em cujas bolsas igualmente se agasalham os pistolões, para sua defesa nos percalços dos maus encontros.
Deixando o bairro exôtico do Serralho, e, às arrecuas, a sinagoga da oração, Isaac Marcos meteu-se nos trilhos confusos que o levariam aos casais, castelos, solares, abadias, mosteiros, onde, por venda ou escambo de baixelas avariadas, negociaria as peças da sua carga.
Depois, no itinerário das feiras, por vilórios e lugares, o judeu da mercância ambulante continuaria, apegado ao seu pergaminho de privilégio onde o senhor Dom Pedro, regente do reino pelo decesso de Dom Duarte, lhe outorgava livre trânsito.
Rezava assim o papel, datado de 1441.
Que ande em besta muar de sela e freio, sem embargo da ordenação e use clavina ou bacamarte.....
Lê-se num livro antigo:
Autêntica sombra negra dos mesteirais e regatões era o almotacé.
Esta autoridade não só tabelava preços como vigiava a pureza dos artigos e a rectidão dos pesos e medidas.
Quando, pois, a raza não andava ao lado da razoira, o ralo com o funil, o fiel com a balança, intervinha logo o almotacé com a sua vara, a sua jurisdição, o seu poder, julgando quase discricionariamente.
Dom Dinis mandou para todas as administrações municipais instruções várias para os titulares do cargo...ao tempo dizia-se carrego para acentuar o código de obrigações.
Eis alguns exemplos
Mandamos que os almotacés vão ver as medidas do pão, do vinho, do azeite e do vinagre,e os pesos em geral.
E, se os acharem maus, que apliquem as penas do costume.
Outrossim, mandamos que os almotacés vão às casas das regateiras e verifiquem o mel, a cera, a pimenta, os alhos e as cebolas. E se estiverem a vender por mais do que o almotaçaram peitem por cada vez um maravidi.
Como se vê, cumpria aos almotacés vigiar o cumprimento dos preços tabelados, ou, como então se dizia, almotaçados .
De igual modo lhe competia vigiar a qualidade e os preços dos artigos feitos pelos mesteirais, ou seja pelos homens dos ofícios...aprendizes, companheiros e mestres.
De modo a que não faltassem no mercado artigos de boa qualidade a preços razoáveis.
Também ordenou Dom Dinis..
As candeias de cera e de sebo que as façam boas e de pavios delgados.
Os ferreiros que façam clavos—hoje dizemos cravos—de bom material. E as ferraduras que sejam boas e de bom ferro.
Mas nem tudo são intrujices, arteirices, trampolinices na Feira de Ano.
Há cantinhos sérios, há almas como vidraças que negoceiam com transparente sinceridade - assim Deus me castigue se eu o engano, meu senhor.
Gente pobre que leva ao mercado o pouco que rendeu a sua leira, o seu hortejo, o seu galinheiro - salamins de milho miúdo, de feijões moleiros ou galegos, uma dúzia de ovos, as duas galinhas que andou todo o ano a criar para esse fim e das quais se aparta com sacrifício e pesar...elas companheiras diárias nas tristes migalhas do seu minguado pão....
Torna-se necessário vender para o governo da casa - a merca de uma saia,de um lenço ou a décima à Fazenda - a terrível fazenda dos crueis relaxos, com a qual não querem contas nem teimas.
Mas nem tudo são caras de poucos amigos, caras desconfiadas, reservadas, caras de olhos fajardos em almas velhacas cujo único intento ao abeirar-se de alguém, para negócios ou contratos, é enfiar toda a gente pelo fundo duma agulha, pondo especial filé em comer os que têm estudos, para que eles, labrostas se possam gabar de lograr doutores e assim passarem a ser tidos por finórios.
Mas nem tudo é deste jaez, nem tudo - Deus louvado - é manha e duzeza vesga, nas feições destes canhestros de alma
Ainda se encontram fisionomias abertas em figuras populares, rostos inteiros que tudo mostram no olhar franco, pessoas que prezam a palavra como se fosse escritura.
Já vimos uma das grandes obras no século XX que teve um impato enorme na economia local: a introdução das noras ou rodas. Substituindo a força braçal humana aplicada às picotas ( burras) pela força animal, permitiu aumentar consideravelmente as áreas de regadio pela conquista de pedaços de terra surribando as margens dos rios, estoirando barrocos, construindo cômoros suportados por muros. Terras boas eram aquelas em que se regava a pé, em que água se deslocava pela força natural da gravidade. Era o caso dos açudes donde se regavam as maiores áreas, sobretudo no rio Cesarão na sua margem direita, desde a Cimeira, passando pelos Linhares da Balsa até às veigas das Retortas. Áreas mais pequenas mas de grande produção eram constituídas por hortas, disseminadas um pouco por todo o lado que beneficiavam da água de minas e de presas. Dentro destas destacavam-se as presas do Vale da Lapa alimentadas pelo ribeiro do mesmo nome e a presa de Vale de Castanheiros, célebre pelas sua água quente no Inverno que levava as mulheres a preferirem-na a todas as outras na lavagem da roupa, apesar da distância que era preciso percorrer. Esta ao contrário de outras que eram apenas de um dono, ou em que havia regime de adua no regime de rega, era, no que toca a lavagens, de uso público. Todas as presas, espalhadas um pouco por todo o lado, tinham as suas especificidades. Por exemplo, a dos Galhardos, no sopé do monte do Cabeço da Porca tinha umas das águas mais geladas no Verão. Uma presa como esta de água abundante e uma extensão de terra razoável constituía uma garantia de uma subsistência mais tranquila. E aos que labutavam nos campos nos cálidos dias de Verão, era direito consuetudinário, podiam usufruir destas nascentes para matarem a sede, dando cumprimento à ordem de misericórdia de dar de beber a quem tem sede. E por todo o lado, havia águas de nascente puras, cristalinas, frescas. Hoje não encontrará em todo o termo de Vilar Maior (atrevo-me a dizer em todo o concelho do Sabugal) fonte ou poço onde possa matar a sede com higiene e segurança. Centenas de poços abertos, ao longo do tempo, em sítio onde se vislumbrasse a possibilidade de uma horta, encontram-se abandonados, como abandonada se encontra a natureza à lei da selva. As vacas, animal de grande exigência alimentar(sabem que uma vaca polui tanto como um automóvel?) mas de poucos cuidados por parte dos donos, dominam agora a paisagem rural. Em vez das fontes surgem charcas de água, mais depósitos que nascentes. O arame farpado omnipresente substitui as paredes milenares que, aos poucos, se vão deitando abaixo para facilitar o trânsito dos animais. Os caminhos ficam alguns intransitáveis, outros barrados com portões improvisados de arame farpado e outros, ainda, são pura e simplesmente privatizados. Tudo isto por mor das políticas de Lisboa e de Bruxelas, tudo isto por mor das políticas ditas de desenvolvimento rural ( tem piada desenvolvimento rural) baseadas na atribuição de subsídios: subsídios para arrancar vinhas, subsídios para semear isto e aquilo, subsídios para estar quietos, subsídios para burros, cabras, ovelhas, vacas, para carrasqueiras. Em meio século com subsídios conseguiu-se, não o desenvolvimento rural, mas acabar com o mundo rural. A água, a quantidade e qualidade, é o melhor espelho do estado a que chegámos.
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