Sexta-feira, 28 de Julho de 2017

Contradições - O Riba-Côa e a construção da Europa

Este texto foi escrito há 25 anos. Tempo suficiente para avaliar da mudança da paisagem e da sociedade.

             Que pena me faz a mim, filho desta terra, conhecedor do que foi num passado ainda recente, vê-la extinguindo-se tão irremediavelmente num país que dizem estar a desenvolver-se, a modernizar-se, a europeizar-se. O que sinto não é saudade ou saudade apenas, mas dor e uma raiva impotente. Nos dias que vivemos, chegam -nos por todos os meios, notícias em defesa de tal animal ou de tal planta,( seja do lince da Malcata ou do azevinho), de um monumento, de um costume ou usança; há manifestações de solidariedade  para com o povo de Timor que, justamente, quer viver segundo a sua cultura e recusa a subjugação a uma alheia; somos, até, capazes de convictamente nos pronunciarmos em defesa dos índios da Amazónia. Assistimos, entretanto, indiferentes à morte de comunidades e culturas seculares que foram parte activa e enriquecedora do que foi e é  a nação e a cultura portuguesa. Entre elas está a região de Ribacôa que foi a última parcela  a integrar o território nacional do continente, após longas e devastadoras guerras que terminaram com o tratado de Alcanizes, no reinado de D. Dinis. Grande foi a atenção que a partir de então, tiveram os monarcas, manifesta na defesa ( lá está toda a linha dos castelos do Sabugal, Alfaiates, Vilar Maior, Castelo Bom e Castelo Rodrigo) e no povoamento como o atestam os forais e a criação dos municípios; muitos são os vestígios dos povos antigos que aqui se fixaram. Ao longo de séculos, pela acção do poder político, do poder da Igreja e do labor das gentes aqui se foram forjando formas próprias de vida, isto é, uma maneira própria de ser português e de o ser tão plena e dignamente como em qualquer outra parte do território. Esta maneira de ser português, esta forma de participar na cultura nacional está em extinção. Pelo simples facto de que não há pessoas. Cada uma das suas múltiplas aldeias está morta ou em vias de extinção. Basta olhar para as estatísticas. Na década de cinquenta era ainda um fervilhar de gente. A vida pulsava por todos os caminhos, veredas, hortas, casas e ruas. Era muita vida para tão pouco espaço. Hoje há tanto espaço para nenhuma vida. Não foi uma barragem que submergiu Ribacôa mas um poder político que o abandonou e, diga-se, uma Igreja que deixou de estar presente. Desapareceram o professor primário e o padre, os dois pilares fundamentais  da cultura nestas comunidades. As escolas fecharam e já se não houve o cantarolar da tabuada. Já se não fazem contas à vida. Algumas igrejas ainda abrem, algumas vezes, ao Domingo, por enquanto; e sempre que a morte bate à porta. Acabem os jornais como o "Nordeste" e terão cortado os ténues laços que unem aqueles que ausentes guardam a memória do passado. Que país é este que tão distraído anda com o que tão longe acontece e se esquece de si? Andam os políticos tão ocupados com a construção da Europa! Quem mais que os ribacudanos a ajudaram a construir? Com pá, suor, cimento e lágrimas. Muitas lágrimas. E sangue. Abandonaram tudo: os campos, os gados, as mulheres e os filhos. Viveram em barracas, levantaram-se manhã cedo, muito cedo e chegavam à noite, tarde, muito tarde. Não havia sábados de descanso e, quantas vezes, Deus lhes perdoe, sacrificaram o dia do Senhor para que a Europa se construísse. E o seu país também. Na Europa ficava a obra feita, para o país vinha o dinheiro que ajudou a transição para a democracia , em 74/75; que ajudou a reintegração dos retornados de África; que permitiu aos nossos políticos passearem-se pelos corredores da CEE; pelos corredores do Centro Cultural de Belém e ...por outros corredores.

            Que recebemos em troca? A sua ruína e a da sua região porque, se num lado ficou a obra e para o outro foi o dinheiro aqui cavou-se o vazio, o deserto. A terra se não é cuidada morre.

                        JÚLIO SILVA MARQUES, in "O Nordeste", 1992

publicado por julmar às 11:19
link | comentar | favorito
Terça-feira, 18 de Julho de 2017

Ano 2051 - Senhora do Castelo

VM 049a.jpg

Ano 2051. Estou velho, muito velho. O amigo Amora da Silva, bem mais novo que eu, morrerá antes de mim. Há para trás uma vida, um passado longo que carregámos até chegar aqui. Sentados, no átrio do cemitério que é também o átrio da Igreja da Senhora do Castelo, num pôr do sol de Junho, perdemos o olhar entre a raia de Espanha e o sol que mergulha no horizonte da Serra da Estrela.  De repente, como se fora a primeira vez, apercebemo-nos do lugar maravilhoso onde nos encontrávamos quer pelo disfrute da paisagem distante, quer pelo quadro que nos envolvia: A Igreja da Senhora do Castelo restaurada no seu arco, com telhado em telha antiga, a que os antigos chamavam telha de Nave de Haver, e um amplo portão gradeada em ferro que permite ver o seu interior onde, num pedestal, está exposta a pérola de Vilar Maior: A Pia Batismal. Em torno da dita pia, algumas campas fúnebres, o ajimez e outras pedras com história. O largo em que nos encontramos tem o chão empedrado, bancos em volta e arbustos autóctenes bem cuidados. Belo largo este que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos! Belo momento este em que o dia transita para a noite! Uma iluminação mortiça surge dos candeeiros e o firmamento, paulatinamente, vai-se enchendo de estrelas, cada vez mais e mais, tantas que, apertadinhas umas frente a outras e outras, parece não haver lugar para mais. 

- Vou andando, diz o meu companheiro, costas voltadas puxando o  ferrolho dos portões que, abrindo-se, gemem lamurientos em seus gonzos.

Deitei as costas no banco e cravados os olhos no céu continuei perdendo-me na decifração de desenhos estelares. Uma coruja sobrevoou a igreja e o pio dum mocho  ouviu-se pela última vez. 

 

publicado por julmar às 17:39
link | comentar | favorito
Quinta-feira, 13 de Julho de 2017

Porque andas tu mal comigo

Os simples - Gomes Leal

Poesia que nunca mais se fará por que já não há trigueiras, nem ceifeiras, nem lavadeiras, nem poetas que dêem atenção aos simples. Porque já não há simples.

Porque andas tu mal comigo 
Ó minha doce trigueira 
quem me dera ser o trigo 
Que andando pisas na eira 
Quando entre as mais raparigas 
Vais cantando entre as searas 
Eu choro ao ouvir-te as cantigas 
que cantas nas noites claras 
Por isso nada me medra 
Ando curvado e sombrio 
Quem me dera ser a pedra 
em que tu lavas no rio 
E falam com tristes vozes 
Do teu amor singular 
Aquela casa onde coses 
com varanda para o mar 
(e) por isso nada me medra 
ando curvado e sombrio 
quem me dera ser a pedra 
em que tu lavas no rio

publicado por julmar às 12:02
link | comentar | favorito
Terça-feira, 11 de Julho de 2017

Sinalização

sinalizacao.jpg

Imagine-se em qualquer sítio do país, ou do mundo, com uma sinalização como esta. O que faria? Seguir para a direita? Seguir para a esquerda? Esperar por alguém? 

Teve sorte o automobilista que se defrontava com este dilema, pois calhou de eu ir a passar:

- Por favor, quero ir para Vilar Formoso.

Claro que a gente da Vila e arredores não lhes faz falta que estão tão fartos de saber e até ficam admirados como pode haver alguém que não saiba como se vai para Vilar Formoso, para a Bismula ou para o Sabugal. O senhor Presidente da Câmara e os seus vereadores também por aqui passarão mas eles também não precisam. Porque esta situação não está assim há oito dias, há um mês ou há um ano. Nem as eleições que se avizinham os fará resolver problemas assim, porque tudo vai ficar na mesma, tudo vai ficar igual. Ou vão mostrar que estou enganado? 

publicado por julmar às 18:33
link | comentar | favorito

Um sítio para pousar a cabeça, Manuel António Pina

 

poemai.jpg

Junto à água


Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.

Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!

E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos

e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.

Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.

 

publicado por julmar às 17:59
link | comentar | favorito
Terça-feira, 4 de Julho de 2017

Orca, a terra do senhor Fernando

Orca Terra

Mais que uma vez, falei de uma personagem ímpar que, por seu valor, se impôs na comunidade de Vilar Maior, de seu nome completo Fernando Boavida Castelo Branco. Passou a ser ratado como senhor Fernando ou senhor Fernandinho pela frente. Por trás, movidos por inveja, alcunharam-no de Areias.  Dele se pode sizer que chegou, viu e venceu combinando um jeito especial para o negócio com uma grande dose de sorte. Numa comunidade a viver ainda ao modo medieval, numa economia de troca de favores e de relações de patrocinato, introduziu como exclusivo valor de troca o dinheiro. Com ele chegou a motorização a Vilar Maior, proprietário de três automóveis e de uma malhadeira movida a motor.  

Fernandinho da Orca. De uma terra, que de acordo com a descrição da autora, era muito semelhante a Vilar Maior. O que levou o senhor Fernando a romper com a cultura de origem?

publicado por julmar às 18:45
link | comentar | favorito

.Memórias de Vilar Maior, minha terra minha gente

.pesquisar

 

.Março 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

24
25
26
27
28
29
30

31


.posts recentes

. Vilar Maior, minha terra ...

. Família Silva Marques

. Emigração, Champigny-sur-...

. Para recordar - Confrater...

. Requiescat, Isabel da Cun...

. Em memória do ti Zé da Cr...

. Requiescat in pace, Fenan...

. Paisagem Zoológica da Vil...

. Gente da Minha terra (192...

. Requiescat in pace, José ...

.arquivos

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

. Novembro 2006

. Outubro 2006

. Setembro 2006

. Agosto 2006

.links

.participar

. participe, leia, divulgue, opine

blogs SAPO

.subscrever feeds