Este texto foi escrito há 25 anos. Tempo suficiente para avaliar da mudança da paisagem e da sociedade.
Que pena me faz a mim, filho desta terra, conhecedor do que foi num passado ainda recente, vê-la extinguindo-se tão irremediavelmente num país que dizem estar a desenvolver-se, a modernizar-se, a europeizar-se. O que sinto não é saudade ou saudade apenas, mas dor e uma raiva impotente. Nos dias que vivemos, chegam -nos por todos os meios, notícias em defesa de tal animal ou de tal planta,( seja do lince da Malcata ou do azevinho), de um monumento, de um costume ou usança; há manifestações de solidariedade para com o povo de Timor que, justamente, quer viver segundo a sua cultura e recusa a subjugação a uma alheia; somos, até, capazes de convictamente nos pronunciarmos em defesa dos índios da Amazónia. Assistimos, entretanto, indiferentes à morte de comunidades e culturas seculares que foram parte activa e enriquecedora do que foi e é a nação e a cultura portuguesa. Entre elas está a região de Ribacôa que foi a última parcela a integrar o território nacional do continente, após longas e devastadoras guerras que terminaram com o tratado de Alcanizes, no reinado de D. Dinis. Grande foi a atenção que a partir de então, tiveram os monarcas, manifesta na defesa ( lá está toda a linha dos castelos do Sabugal, Alfaiates, Vilar Maior, Castelo Bom e Castelo Rodrigo) e no povoamento como o atestam os forais e a criação dos municípios; muitos são os vestígios dos povos antigos que aqui se fixaram. Ao longo de séculos, pela acção do poder político, do poder da Igreja e do labor das gentes aqui se foram forjando formas próprias de vida, isto é, uma maneira própria de ser português e de o ser tão plena e dignamente como em qualquer outra parte do território. Esta maneira de ser português, esta forma de participar na cultura nacional está em extinção. Pelo simples facto de que não há pessoas. Cada uma das suas múltiplas aldeias está morta ou em vias de extinção. Basta olhar para as estatísticas. Na década de cinquenta era ainda um fervilhar de gente. A vida pulsava por todos os caminhos, veredas, hortas, casas e ruas. Era muita vida para tão pouco espaço. Hoje há tanto espaço para nenhuma vida. Não foi uma barragem que submergiu Ribacôa mas um poder político que o abandonou e, diga-se, uma Igreja que deixou de estar presente. Desapareceram o professor primário e o padre, os dois pilares fundamentais da cultura nestas comunidades. As escolas fecharam e já se não houve o cantarolar da tabuada. Já se não fazem contas à vida. Algumas igrejas ainda abrem, algumas vezes, ao Domingo, por enquanto; e sempre que a morte bate à porta. Acabem os jornais como o "Nordeste" e terão cortado os ténues laços que unem aqueles que ausentes guardam a memória do passado. Que país é este que tão distraído anda com o que tão longe acontece e se esquece de si? Andam os políticos tão ocupados com a construção da Europa! Quem mais que os ribacudanos a ajudaram a construir? Com pá, suor, cimento e lágrimas. Muitas lágrimas. E sangue. Abandonaram tudo: os campos, os gados, as mulheres e os filhos. Viveram em barracas, levantaram-se manhã cedo, muito cedo e chegavam à noite, tarde, muito tarde. Não havia sábados de descanso e, quantas vezes, Deus lhes perdoe, sacrificaram o dia do Senhor para que a Europa se construísse. E o seu país também. Na Europa ficava a obra feita, para o país vinha o dinheiro que ajudou a transição para a democracia , em 74/75; que ajudou a reintegração dos retornados de África; que permitiu aos nossos políticos passearem-se pelos corredores da CEE; pelos corredores do Centro Cultural de Belém e ...por outros corredores.
Que recebemos em troca? A sua ruína e a da sua região porque, se num lado ficou a obra e para o outro foi o dinheiro aqui cavou-se o vazio, o deserto. A terra se não é cuidada morre.
JÚLIO SILVA MARQUES, in "O Nordeste", 1992
Ano 2051. Estou velho, muito velho. O amigo Amora da Silva, bem mais novo que eu, morrerá antes de mim. Há para trás uma vida, um passado longo que carregámos até chegar aqui. Sentados, no átrio do cemitério que é também o átrio da Igreja da Senhora do Castelo, num pôr do sol de Junho, perdemos o olhar entre a raia de Espanha e o sol que mergulha no horizonte da Serra da Estrela. De repente, como se fora a primeira vez, apercebemo-nos do lugar maravilhoso onde nos encontrávamos quer pelo disfrute da paisagem distante, quer pelo quadro que nos envolvia: A Igreja da Senhora do Castelo restaurada no seu arco, com telhado em telha antiga, a que os antigos chamavam telha de Nave de Haver, e um amplo portão gradeada em ferro que permite ver o seu interior onde, num pedestal, está exposta a pérola de Vilar Maior: A Pia Batismal. Em torno da dita pia, algumas campas fúnebres, o ajimez e outras pedras com história. O largo em que nos encontramos tem o chão empedrado, bancos em volta e arbustos autóctenes bem cuidados. Belo largo este que separa o mundo dos mortos do mundo dos vivos! Belo momento este em que o dia transita para a noite! Uma iluminação mortiça surge dos candeeiros e o firmamento, paulatinamente, vai-se enchendo de estrelas, cada vez mais e mais, tantas que, apertadinhas umas frente a outras e outras, parece não haver lugar para mais.
- Vou andando, diz o meu companheiro, costas voltadas puxando o ferrolho dos portões que, abrindo-se, gemem lamurientos em seus gonzos.
Deitei as costas no banco e cravados os olhos no céu continuei perdendo-me na decifração de desenhos estelares. Uma coruja sobrevoou a igreja e o pio dum mocho ouviu-se pela última vez.
Porque andas tu mal comigo
Ó minha doce trigueira
quem me dera ser o trigo
Que andando pisas na eira
Quando entre as mais raparigas
Vais cantando entre as searas
Eu choro ao ouvir-te as cantigas
que cantas nas noites claras
Por isso nada me medra
Ando curvado e sombrio
Quem me dera ser a pedra
em que tu lavas no rio
E falam com tristes vozes
Do teu amor singular
Aquela casa onde coses
com varanda para o mar
(e) por isso nada me medra
ando curvado e sombrio
quem me dera ser a pedra
em que tu lavas no rio
Imagine-se em qualquer sítio do país, ou do mundo, com uma sinalização como esta. O que faria? Seguir para a direita? Seguir para a esquerda? Esperar por alguém?
Teve sorte o automobilista que se defrontava com este dilema, pois calhou de eu ir a passar:
- Por favor, quero ir para Vilar Formoso.
Claro que a gente da Vila e arredores não lhes faz falta que estão tão fartos de saber e até ficam admirados como pode haver alguém que não saiba como se vai para Vilar Formoso, para a Bismula ou para o Sabugal. O senhor Presidente da Câmara e os seus vereadores também por aqui passarão mas eles também não precisam. Porque esta situação não está assim há oito dias, há um mês ou há um ano. Nem as eleições que se avizinham os fará resolver problemas assim, porque tudo vai ficar na mesma, tudo vai ficar igual. Ou vão mostrar que estou enganado?
Junto à água
Os homens temem as longas viagens,
os ladrões da estrada, as hospedarias,
e temem morrer em frios leitos
e ter sepultura em terra estranha.
Por isso os seus passos os levam
de regresso a casa, às veredas da infância,
ao velho portão em ruínas, à poeira
das primeiras, das únicas lágrimas.
Quantas vezes em
desolados quartos de hotel
esperei em vão que me batesses à porta,
voz de infância, que o teu silêncio me chamasse!
E perdi-vos para sempre entre prédios altos,
sonhos de beleza, e em ruas intermináveis,
e no meio das multidões dos aeroportos.
Agora só quero dormir um sono sem olhos
e sem escuridão, sob um telhado por fim.
À minha volta estilhaça-se
o meu rosto em infinitos espelhos
e desmoronam-se os meus retratos nas molduras.
Só quero um sítio onde pousar a cabeça.
Anoitece em todas as cidades do mundo,
acenderam-se as luzes de corredores sonâmbulos
onde o meu coração, falando, vagueia.
Mais que uma vez, falei de uma personagem ímpar que, por seu valor, se impôs na comunidade de Vilar Maior, de seu nome completo Fernando Boavida Castelo Branco. Passou a ser ratado como senhor Fernando ou senhor Fernandinho pela frente. Por trás, movidos por inveja, alcunharam-no de Areias. Dele se pode sizer que chegou, viu e venceu combinando um jeito especial para o negócio com uma grande dose de sorte. Numa comunidade a viver ainda ao modo medieval, numa economia de troca de favores e de relações de patrocinato, introduziu como exclusivo valor de troca o dinheiro. Com ele chegou a motorização a Vilar Maior, proprietário de três automóveis e de uma malhadeira movida a motor.
Fernandinho da Orca. De uma terra, que de acordo com a descrição da autora, era muito semelhante a Vilar Maior. O que levou o senhor Fernando a romper com a cultura de origem?
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