Poucos davam uma saudação tão simples e encenada como a sua: a entoação da curta frase, acompanhada de um gesto que leva a mão ao chapéu, que nunca tira, era generosamente dirigida a todos que com ele se cruzavam, como um ritual, fossem ricos ou fossem pobres que a saudação não se nega a ninguém. Ao contrário de tantos outros, José Vicente, não se rebaixava junto dos ricos da terra que o seu mundo não tinha fronteiras e metia os pés ao caminho e tanto ia até à vizinha Espanha como aparecia em qualquer aldeia dos arredores na procura do sustento para si e para a sua Maria das Dores. Melhor que tudo era uma aguardente pela manhã e um copo de vinho a qualquer hora. Grande Zé Vicente que, sabe-se lá porquê, carregava a alcunha de Salazar.
Referem as biografias de I. Kant (1724-1804), filósofo alemão, que ele se levantava às cinco da manhã, tomava o seu chá, fumava o seu cachimbo e, passando pela preparação de aulas, escrita e lecionação, impreterivelmente, às cinco horas da tarde, fazia a sua caminhada habitual, cujo horário, segundo a famosa lenda, era tão preciso e invariante que as donas de casa de Königsberg podiam acertar os seus relógios pelo minuto em que o Professor Kant passava pela rua de suas casas. Ora, admirador que sou da obra de Kant, encontrando-me em férias em Vilar Maior, durante o mês de Agosto, todos os dias, quase com a regularidade cronométrica do filósofo, antes do nascer do sol, iniciava o percurso Vilar Maior-Aldeia da Ribeira – Vilar Maior. Como filósofo, tão longe do esplendor de Kant mas com a mesma atitude filosófica, sei quão importante é para a reflexão e para o devaneio, a mecanização do corpo andante. Ocorreu, nesses devaneios matinais, perguntar-me: Porque não fazer todos os dias um trajeto diferente? Porque não percorrer todas as terras do concelho? E veio-me à memória o título da obra de Joaquim Manuel Correia – Memórias Sobre o Concelho do Sabugal. Não medi distâncias nem fiz cálculos; não consultei mapas nem fiz qualquer preparação. No dia seguinte, e todos os dias que seseguiram encontrei-me num trajeto diferente. À noite,antes de adormecer, decidia o trajeto do dia seguinte. Em cada percurso procurava, sobretudo, ver, ouvir, cheirar, sentir a brisa da manhã, ver o prateado do horizonte que gradualmente se doirava até aparecer a bola de fogo. Não há raiar da aurora tão belo como o da Raia, aqui onde o dia nasce pequenino, ali perto, em Espanha. E o tempo de andar a pé, dá para tudo: para sentir, pensar, sonhar, imaginar…e para desenhar o que faria com estas viagens. Poderiam ficar pelo andar, pelo ver, pelo pensar, como conversas para mim próprio. Porém, sei bem do prazer e do proveito que advém de tentarmos interpretar as nossas experiências e de as comunicarmos aos outros e, se uns o fazem pelo desenho, pela pintura, pela música, ou por qualquer outra forma, eu não o consigo fazer senão, e com dificuldade, pela escrita.
Assim, o que escrevo não tem pretensão maior do que conhecer melhor estas terras na sua configuração natural, na compreensão do esforço multissecular de gerações na humanização da paisagem e na construção de um património cultural que nos deu a identidade que nos tornou aquilo que somos. Escrevo para aprender; não escrevo para dizer como as coisas são, mas, tão só, como eu as vejo. Se torno público, estas divagações, é só por considerar que outros, vendo como eu olho, tenham a oportunidade de olhar de modo diferente. Como dizia A. Gedeão no poema Impressão Digital:
Os meus olhos são uns olhos,
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros, com outros olhos,
Não veem escolhos nenhuns.
E lá fui eu, qual D. Quixote sem escudeiro, caminho fora, passo a passo na redescoberta das terras do Côa, da margem esquerda e da margem direita, subindo e descendo montes, atravessando rios, olhando horizontes que se perdem por Espanha, pela serra da Estrela, por Malcata
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