A linha corria, ansiosa, pela agulha. Tinham-lhe dito que iria ser vista e admirada por muitas pessoas, mesmo anos após a sua geradora terminar o trabalho.
Maria da Graça tinha nas linhas e nas agulhas as suas maiores confidentes. Não havia momento algum em que estas não estivessem presentes. Enquanto o seu João trabalhava a terra, a Graça levava o seu açafate e as suas mãos ganhavam vida própria. Entre os seus dedos, passava a linha e ponto aberto, aqui, ponto fechado, ali, laçada após laçada o seu trabalho ganhava forma. E que lindos trabalhos!
Assim, surgiram, toalhas, colchas, naperons e outros trabalhos que tais. Não havia ninguém que não conhecesse a sua arte. Juntamente com a ti Olinda, a ti Filomena, a ti Olímpia, era vê-las a trabalhar na sua arte e a partilharem os seus conhecimentos.
Herdei da minha avó Graça este gosto pelos lavores. Quem me conhece, diz que sou como ela quando estou a bordar ou a fazer outro tipo de trabalho deste género: trabalho, mas nem sequer olho para o que estou a fazer. Sai-me mecanicamente. Desde que o dedo dê a laçada ou o ponto esteja certo, a teia continua.
Quando, este ano, a propósito da comemoração dos 725 anos do Foral de D. Dinis, se decidiu organizar várias oficinas relacionadas com as artes e ofícios de Vilar Maior, não tive dúvida alguma. De modo a homenagear a minha avó, decidi, imediatamente, dinamizar esta oficina.
Juntaram-se a mim mulheres de Vilar Maior que, tal como a minha avó e os seus familiares davam vida a estes trabalhos: as irmãs Filomena, Ana e Beatriz André; as irmãs Ana Maria, Filomena e Leonor Cunha, a ti Olímpia, a Maria Cândida Cardoso e Maria Cardoso, a Kina e a Carla Seixas. Nesses dias, contámos histórias, costurámos, bordámos, fizemos renda, lembramo-nos do passado que está sempre presente.
O trabalho realizado nesta oficina foi colocado na mesa dos reis, no banquete realPara além disso, ajudaram à organização da exposição de Artes e Lavores, onde foram expostos os trabalhos feitos pelos seus antepassados e por elas próprias, juntamente com utensílios ligados à produção do linho, candeias e vassouras de bracejo.
Agradeço a todas pela participação e empenho.
(Susana Seixas Marques)
Todos, homens e mulheres, novos e velhos, se queixavam das parcas terras de cultivo e todos concordavam quanto à pobreza dos solos que fazia a pobreza das gentes. A esperança surgia incrédula na boca da Graça, sempre a queixar-se do negrume da pedra: - Ah! Mas se um dia os barrocos tiverem valor, vamos todos ser ricos!
A Graça morreu, os anos passaram e começou a ouvir falar-se de um minério que se poderia extrair dos barrocos. Começou a soar que o lítio haveria de ser o novo petróleo que iria puxar a carroça do mundo.
Antes que tal acontecesse, surgiu, numa quinta feira, um sujeito que se dizia ser de Quarta Feira e que, na Vila, já obrara alguns milagres que, já, não aconteciam desde que Cristo veio ao mundo. Numa sexta feira, sem grandes mesuras, ele, para quem a pedra não guardava segredos, escolheu um anónimo barroco e, sem dizer a ninguém, disse-o ao barroco:
"És tu, anónimo barroco, tão inxepressivo como os teus ignotos irmãos, que vais ser o mensageiro dos novos tempos que se aproximam".
Transportado para o largo do Pelourinho que, do alto da sua gaiola, haveria de ser a testemunha da transformação do barroco dormente e inerte numa outra coisa jamais vista. Cortou-lhe os excessos, raspou-lhe o musgo, aplanou-lhe a superfície. Convocou discípulos impreparados, meteu-lhes maço e cinzel na mão, no suposto que ao fazer haveriam de transformar a pedra e esta os transformaria a eles. Assim, se fez ouvir, no largo, a batuca do sulcar da pedra, trucatruca, trucatruca. E o mudo barroco, lenta e progressivamente, ia fixando a mensagem curta e duradoura, até a saber completa e de cor, incrédulo do que lhe estava a acontecer. Pronto, pediu que o levassem, junto do castelo e, com olhos emprestados, escolheu o lugar que lhe pareceu adequado para mostrar a mensagem que, orgulhosamente, ostentava:
Villar Mayor
725
anos
Foral D. Dinis
Dizia o pedreiro de Quarta Feira que se a rainha D. Isabel transformara pão em rosas, não via razão para ele não fazer falar um barroco.
Outros milagres se seguirão.
Filomena Dias Duarte, filha de José Duarte e de Joaquina Dias, no ano de 1921, faleceu ontem no lar da Santa Casa da Misericórdia. Era a pessoa mais idosa do lar e de Vilar Maior. Por vezes, há vidas importantes que se vivem no silêncio e na humildade. A tia Mena tinha duas irmãs (a Ana e a Beatriz, esta ainda viva) e um irmão, o João. O pai era sapateiro de profissão, nome que acabou por servir de identificação dos filhos. A ti Mena, viveu a sua vida na casa que era dos seus pais, nos Craveiros. Talvez nunca tenha saído da Vila, antes da sua primeira ida de urgência para o hospiatal da Guarda de onde saiu para o lar de Alfaiates. Num tempo em que não era comum as mulheres aprenderem a ler, lia e escrevia corretamente. Pergunto-me onde foi buscar uma educação tão cuidada, um trato tão afável, o cuidadado com tudo e com todos. Cuidado que começava consigo, na forma como vivia, ganhando o próprio sustento, cultivando os alimentos. Durante muitos anos, pelo natal, oferecia-lhe "O Seringador" que ela tanto apreciava. Exercia com esmero o ofício de costureira e ensinava-o às raparigas que, feita a quarta classe, lhes haveria de ser útil pela vida fora. Durante muitos anos, a liturgia da Igreja ficava muito mais animada pois os cânticos estavam a seu cargo. A sua longa vida foi uma longa oração sem intervervalos. Há vidas que valem a pena. Continuará connosco.
São muitas as formas de tornar Vilar Maior uma aldeia cultural. Talvez estejamos a trilhar o caminho certo para o conseguir, um caminho que não tem fim, porque a cultura, como a vida, não tem intervalos. Todos os vilarmaiorenses são chamados a este projeto, cada um dando um pouco de si. Um primeiro e importante passo poderá ser inscrever-se sócio da associação.
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