Barrocos há muitos, na Vila e nos seus termos. Apesar de, por si, não se poderem mover por não terem recebido o sopro da vida, têm um sentido gregário preferindo estar juntos uns dos outros, formando cabeços, penedias, rochedos, encarapitando-se uns sobre os outros, sendo, naturalmente, mais felizes os que podem espreitar a vida dos homens. A maior parte deles, vive no anonimato, a não ser que algum tenha tomado uma forma caprichosa com formas e feições que a natureza neles foi inscrevendo, num tempo quase eterno ou tenha sido testemunha ou palco de acontecimentos invulgares, ou tenha sido chamado a lembrar aos vindouros um fato relevante, como aconteceu ao Barroco que Fala, no anonimato continuarão.
Assim, sendo um caso tão raro um barroco sair do anonimato, alguém haveria de me castigar por ter dito o que fica dito se não desse voz ao Barroco dos Martírios. Perguntei-lhe, então, donde vieste e ficou mudo, como só um barroco sabe ficar. Enorme que é e não tendo pés, nem asas, nem barbatanas, poderia não ter vindo de nenhures e ter nascido ali. Até, como veremos, é um sítio bonito e estratégico, senão para viver, para ser ali que é o mais comum dos destinos dos barrocos. Sorte dele que, até hoje, ninguém se lembrou de chegar lá, e, sem dó nem piedade, com um martelão ou com mecha e pólvora, desfazê-lo em pedaços, por considerarem que alguma utilidade teria noutro lugar. Facto é que ele carregava sobre si fortes responsabilidades. Com efeito, calhou estar no sítio certo, porque uns homens, há uns séculos atrás - para o barroco, atendendo à sua idade, é como se tivesse sido hoje ao entardecer - viviam cheios de medo que outros homens entrassem no sítio onde moravam e decidiram que ali haviam de construir um muro tão forte que os impediria de entrar na cidadela e, deste modo, o incumbiram de alicerce dessa função defensiva. Chegados ali, os atacantes, olhavam o barroco e o muro que sobre ele se erguia e desistiam, - por aqui não vamos lá!
Se lá foram por outro lado, o barroco não sabia.
Passaram anos e anos, que a ele não lhe pesavam, e ouviu os maus tratos que aos barrocos davam com marrtelo e cinzel: Truca- truca, truca-truca, abrindo um buraco aqui e outro em frente e outro adiante, a talharem um bloco, desfigurando a natureza de ser barroco . Se repararem lá está o barroco pequeno com cicatrizes. Por mim, preferia o outro, onde as crianças se divertiam a escorregar como se fizessem uma longa viagem até ao chão. A um outro barroco, na face lisa, a espreitar à superfície, riscaram um quadrado com linhas para um lado e para outro e apareciam por lá homens a jogar pedrinhas em cima como se não tivessem mais que fazer. Ficava mudo e quedo, como é da sua natureza. Não dava importância, nem sabia o que isso era. Talharam a seu lado pedras, em forma de escadaria por onde seres transitórios passavam para cima e para baixo. Em certas ocasiões, paravam todos, por momentos, em cima dos blocos de pedra, feitos à custa de irmãos seus despedaçados, como se naquele instantâneo disparo quisessem ficar eternos como ele.
Coitados destes bípedes implumes tão frágeis, tão efémeros a quererem num instante de felicidade ameaçada, eternizarem-se num retrato. Comecei a ouvir a voz do barroco:
- De ano a ano, por alturas da Primavera, parava aqui uma multidão, frente ao paço, enfeitado com flores tristes, e panais roxos, e uma cruz metálica, lamuriando orações e entoando lúgubres cânticos. Por mim, nunca senti medo, nem tisteza, nem dor, nem qualquer paixão triste, nem ira, nem ódio, nem inveja, nem qualque paixão alegre, nem desejo de ser isto ou aquilo ou de não ser. Por ser barroco não me interessava com as sentenças que na sala, posta sobre mim, que as sentenças proferidas pelo juiz fossem justas ou injustas; não me interessavam as lições do professor Rosa nem as reguadas que, generosamente, distribuía; ouvi, vezes sem conta, o cantarolar da tabuada e as contas que, para mim, estão feitas ab initio. Nem sequer me afetavam as palavras do professor Rosa quando insultava os alunos - "Tens a cabeça dura como uma pedra." Quanto aos martírios que infligiam aos presos na cadeia, a meu lado, era diferente: a dor era tão grande que nem uma natureza empedernida como a minha podia ficar indiferente. Às mulheres que, nas tardes de invernos soalheiros, me vinham fazer companhia, fazendo meias da lã churra das ovelhas enquanto teciam agasalhos para o corpo, ouvi eu dizer que meu nome era o Barroco dos Martírios. Seria, não porque eu fosse o algoz mas, tão só, a testemunha da dor dos outros. Paredes meias comigo havia a prisão, e era impossível não ouvir os gritos de dor dos prisioneiros sujeitos a martírios. Mudavam os prisioneiros e os carcereiros mas eu continuava lá. Só alguém como eu poderia resistir tão imperturbável e durante tanto tempo à dor, à maldade e à injustiça dos homens.
E o barroco, como se a lígua se tivesse soltado, continuou, como se fora um deus.
- Nada é como era, só eu sou aquilo que era e serei aquilo que sou. Também tu, o único que até hoje me ouviu, deixarás de ser e se fores memória em alguém, será por esta nossa conversa. Não te disse quase nada mas sei tudo quanto aqui se passou: da câmara e do tribunal, da escola e da prisão, dos soldados, das mulheres dos homens. Ninguém que descesse do Cimo da Vila ou a ele subisse se poderia esconder do meu olhar. Aquilo que por aqui não passava era contado, vezes sem conta, pelas mulheres que teciam meia e com receio que eu ouvisse, falavam baixinho, em sussurro ou murmúrio, lembrando-se do dito 'as pedras têm ouvidos'.
- Mas por que me contas tudo isso a mim?
- Porque, até hoje, poucos foram os que repararam em mim. Tu foste o único que me fez perguntas. Agora que sabemos comunicar, poderás continuar a perguntar. Nem imaginas quanto tenho para dizer.
Na verdade um ignoto poeta já, em tempos, se dera conta que este não era um barroco qualquer:
No barroco dos martírios
Dá-se à língua e faz-se a meia
Atrás ouvem-se os murmúrios
Dos presos da cadeia
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