Terça-feira, 20 de Dezembro de 2022

Conto de natal

conto de natal.jpg

Conto de natal, é esta a minha prenda natalícia para a minha gente. Um dia, hei-de escrever um conto com gente da vila, com um presépio feito de musgo de barrocos da Fraga, com uma vaca que dá leite e um burro cantor, meia dúzia de ovelhas churras, um céu frio e estrelado, um chão de neve e um toco enorme a arder. Enquanto esse dia não chega deixo-vos com  o Garrinchas de Miguel Torga que vivia numa terra e com gente como a nossa. 
 
"De sacola e bordão, o velho Garrinchas fazia os possíveis para se aproximar da terra. A necessidade levara-o longe demais. Pedir é um triste ofício, e pedir em Lourosa, pior. Ninguém dá nada. Tenha paciência, Deus o favoreça, hoje não pode ser - e beba um desgraçado água dos ribeiros e coma pedras! Por isso, que remédio senão alargar os horizontes, e estender a mão à caridade de gente desconhecida, que ao menos se envergonhasse de negar uma côdea a um homem a meio do padre-nosso. Sim, rezava quando batia a qualquer porta. Gostavam... Lá se tinha fé na oração, isso era outra conversa. As boas acções é que nos salvam. Não se entra no céu com ladainhas, tirassem daí o sentido. A coisa fia mais fino! Mas, enfim... Segue-se que só dando ao canelo por muito largo conseguia viver.
E ali vinha demais uma dessas romarias, bem escusadas se o mundo fosse de outra maneira. Muito embora trouxesse dez réis no bolso e o bornal cheio, o certo é que já lhe custava arrastar as pernas. Derreadinho! Podia, realmente, ter ficado em Loivos. Dormia, e no dia seguinte, de manhãzinha, punha-se a caminho. Mas quê! Metera-se-lhe na cabeça consoar à manjedoira nativa... E a verdade é que nem casa nem família o esperavam. Todo o calor possível seria o do forno do povo, permanentemente escancarado à pobreza.
Em todo o caso sempre era passar a noite santa debaixo de telhas conhecidas, na modorra de um borralho de estevas e giestas familiares, a respirar o perfume a pão fresco da última cozedura... Essa regalia ao menos dava-a Lourosa aos desamparados. Encher-lhes a barriga, não. Agora albergar o corpo e matar o sono naquele santuário colectivo da fome, podiam. O problema estava em chegar lá. O raio da serra nunca mais acabava, e sentia-se cansado. Setenta e cinco anos, parecendo que não, é um grande carrego. Ainda por cima atrasara-se na jornada em Feitais. Dera uma volta ao lugarejo, as bichas pegaram, a coisa começou a render, e esqueceu-se das horas. Quando foi a dar conta passava das quatro. E, como anoitecia cedo não havia outro remédio senão ir agora a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar. Aflito, batia-lhe na taipa do peito, a pedir misericórdia. Tivesse paciência. O remédio era andar para diante. E o pior de tudo é que começava a nevar! Pela amostra, parecia coisa ligeira. Mas vamos ao caso que pegasse a valer? Bem, um pobre já está acostumado a quantas tropelias a sorte quer. Ele então, se fosse a queixar-se! Cada desconsideração do destino! Valia-lhe o bom feitio. Viesse o que viesse, recebia tudo com a mesma cara. Aborrecer-se para quê?! Não lucrava nada! Chamavam-lhe filósofo... Areias, queriam dizer. Importava-se lá.
E caía, o algodão em rama! Caía, sim senhor! Bonito! Felizmente que a Senhora dos Prazeres ficava perto. Se a brincadeira continuasse, olha, dormia no cabido! O que é, sendo assim, adeus noite de Natal em Lourosa...
Apressou mais o passo, fez ouvidos de mercador à fadiga, e foi rompendo a chuva de pétalas. Rico panorama!
Com patorras de elefante e branco como um moleiro, ao cabo de meia hora de caminho chegou ao adro da ermida. À volta não se enxergava um palmo sequer de chão descoberto. Caiados, os penedos lembravam penitentes.
Não havia que ver: nem pensar noutro pouso. E dar graças!
Entrou no alpendre, encostou o pau à parede, arreou o alforge, sacudiu-se, e só então reparou que a porta da capela estava apenas encostada. Ou fora esquecimento, ou alguma alma pecadora forçara a fechadura.
Vá lá! Do mal o menos. Em caso de necessidade, podia entrar e abrigar-se dentro. Assunto a resolver na ocasião devida... Para já, a fogueira que ia fazer tinha de ser cá fora. O diabo era arranjar lenha.
Saiu, apanhou um braçado de urgueiras, voltou, e tentou acendê-las. Mas estavam verdes e húmidas, e o lume, depois de um clarão animador, apagou-se. Recomeçou três vezes, e três vezes o mesmo insucesso. Mau! Gastar os fósforos todos é que não.
Num começo de angústia, porque o ar da montanha tolhia e começava a escurecer, lembrou-se de ir à sacristia ver se encontrava um bocado de papel.
Descobriu, realmente, um jornal a forrar um gavetão, e já mais sossegado, e também agradecido ao céu por aquela ajuda, olhou o altar.
Quase invisível na penumbra, com o divino filho ao colo, a Mãe de Deus parecia sorrir-lhe. Boas festas! - desejou-lhe então, a sorrir também. Contente daquela palavra que lhe saíra da boca sem saber como, voltou-se e deu com o andor da procissão arrumado a um canto. E teve outra ideia. Era um abuso, evidentemente, mas paciência. Lá morrer de frio, isso vírgula! Ia escavacar o ar canho. Olarila! Na altura da romaria que arranjassem um novo.
Daí a pouco, envolvido pela negrura da noite, o coberto, não desfazendo, desafiava qualquer lareira afortunada. A madeira seca do palanquim ardia que regalava; só de cheirar o naco de presunto que recebera em Carvas crescia água na boca; que mais faltava?
Enxuto e quente, o Garrinchas dispôs-se então a cear. Tirou a navalha do bolso, cortou um pedaço de broa e uma fatia de febra e sentou-se. Mas antes da primeira bocada a alma deu-lhe um rebate e, por descargo de consciência, ergueu-se e chegou-se à entrada da capela. O clarão do lume batia em cheio na talha dourada e enchia depois a casa toda. É servida?
A Santa pareceu sorrir-lhe outra vez, e o menino também.
E o Garrinchas, diante daquele acolhimento cada vez mais cordial, não esteve com meias medidas: entrou, dirigiu-se ao altar, pegou na imagem e trouxe-a para junto da fogueira.
— Consoamos aqui os três - disse, com a pureza e a ironia de um patriarca.
— A Senhora faz de quem é; o pequeno a mesma coisa; e eu, embora indigno, faço de S. José."
Miguel Torga,in Novos Contos da Montanha
publicado por julmar às 11:46
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Segunda-feira, 19 de Dezembro de 2022

Requiescat in pace, Alice Rasteiro

alice r.jpg

Faleceu mais uma conterrânea, Alice Rasteiro, filha de Júlio Rasteiro e Maria Emília Silva, viúva de Amadeu, que viveu os últimos anos no Centro de Bem Estar Social da Malhada Sorda. Da extensa família, que viveu numa casa junto da Misericórdia, constituída por dois irmãos - o José e o António - e quatro irmãs - a Alice, a Ester, a Isabel  e a Conceição - , apenas a Conceição continua entre nós. 

Apresentamos à irmã, aos filhos e restante família as nossas condolências. 

publicado por julmar às 21:32
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Quarta-feira, 14 de Dezembro de 2022

Jerónimo Osório da Fonseca

Dizia-me um conterrâneo, em tom de crítica amigável, no Verão próximo passado, que  este blog dava mais importância ao passado e aos mortos do que ao presente e aos vivos e, claro, não deixa de ter razão. Alguma razão. Terá a ver com o inexorável fato da velhice que, ano a ano, carrego em mim e me leva com mais frequência ao cemitério da aldeia onde converso com gente com quem vivi. Pensando bem, é nos cemitérios que encontramos  a razão do presente e o sentido do futuro. O que são as bibliotecas senão cemitérios de livros, esse armazens do saber? O que aprendemos é não tanto com o vento que passa mas com o vento que passou. 

É assim que, ao interessar-me pelos Fonsecas  Osórios de hoje, navego pelo passado e me aparece gente que " por obras valerosas se vão da lei da morte libertando". A gente que veio parar à minha terra é gente que aqui veio ter, aqui viveu e daqui partiu: Gente rica,  gente nobre, gente pobre; exércitos, alcaides, milícias, guerreiros e guerrilheiro, soldados, capitães, tenentes  e coronéis; bispos e vigários gerais, padres e capelães, missionários e pregadores; pessoal  da administração concelhia e da alfandega, tabeliães, juízes espadanos, regedores; guardas do monte, dos rios, do fisco e da república. Todos em nome de Deus e do rei sustentados por quem trabalha a terra - lavradores, pastores  e cavadores - que de tão ligados à terra não iam nem vinham, por aqui ficavam aguardando o tempo das colheitas para de novo semearem, uma vez e outra, e outra. Havia os homens dos ofícios todos vitais mas de tantos que são que fiquem aqui registados os ferreiros e os pedreiros por razões da sua evidente importância. Sobra desta gente os que por cá passavam ao serviço do rei - Duarte D'Armas desenhador; o Infante D. João de Castro - irmão do rei D. Fernando que fugido à justiça se acoitou no castelo; os homiziados que aqui cumpriam as penas de seus crimes; os pobres que mendigavam um pedacito de pão, por Deus; os criados, os ganhões e criadas de servir, os recém-nascidos colocados na roda enjeitados, os  contrabandistas, os jograis e os teriteiros, as bruxas e boticários, amola tesouras e capadores. E também vinha gente de longe cobrar as rendas, por si ou por seus delegados, como a condessa de Bobadela que arrecadava 140 alqueires de pão por ano. Se aqui houvera uma procissão com toda esta gente com os instrumentos com que ganha a vida - na verdade perdendo-a a cada dia que passa - haveria de ser um  espectáculo admirável. Se não desse para o torto ... que a gadanha do feno, a foice do pão e todas as outras são armas de dois gumes.

Então e as mulheres, voltam a ficar esquecidas? As mulheres eram as mulheres desses homens. 

Então, e o que é que tudo isto tem a ver com o bispo Jerónimo Osório da Fonseca? Veremos num próximo post.

 

 

publicado por julmar às 12:17
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Domingo, 4 de Dezembro de 2022

Cenas da vida real

carro de bois.jpg

 Quem me Dera

Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois

Que vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,

E que para de onde veio volta depois

Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas ...

A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...

Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas

E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco

Fernando Pessoa

 

publicado por julmar às 11:59
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