Numa aldeia de antigamente, sendo que o antigo o poderemos aqui considerar, anterior ao surto migratório da década de 60, havia uma economia de subsistência, onde não haviam chegado motores de combustão, em que toda a energia era natural – a força humana e animal, a força do vento e da água - sem eletricidade ou gás, sem saneamento, sem água ao domicílio. À luz dos parâmetros atuais é o que hoje se considera pobreza extrema. Quem nasceu na década de 50, como eu, em Vilar Maior, conheceu a economia e, em boa parte, a vida da Europa medieval. Foi num cenário assim que eu vim ao mundo pelas mãos da minha avó materna que me cortou o cordão umbilical, me lavou, enxugou e me vestiu, sob a luz trémula do candeeiro a petróleo. Tudo isto era novo, apenas para mim, pois o mesmo cenário e acontecimento já ocorrera seis vezes antes de mim e voltaria a ocorrer mais três. Dez vezes, dez filhos. Dois morreram de tenra idade, dois anjinhos que aumentaram a imensa corte celestial. Os oito constituem hoje a maior irmandade da Vila. Se falo de mim, se falo da minha família é para vos contar como era o mundo por ali nas circunstâncias, no tempo e no modo. Os filhos não eram planeados, era Deus que os mandava, a natureza havia sido criada por Deus e ao homem cumpria dar-lhe curso. Tratando-se de lavrador, contas feitas de cabeça, por analfabetismo ou falta de papel e pena, não deixavam de ser calculadas, afinal, era necessária mão de obra para amanhar as terras e guardar o gado. A Vila refletia o que se passava por outras partes do mundo, como dá conta Bertolt Brecht no poema “Lenda do Soldado Morto”:
"O lavrador preocupa-se com o seu gado,
Faz filhos para não ter criado.
O preço do leite sobe, o do sangue desce,
Morre-se antes que a guerra comece.
O pão come-se à noite e de manhã,
Morre-se antes de ter um caixão."
Era na casa do lavrador remediado, como o meu pai, que a vida mais pesava: Para sustentar a junta das vacas, esses dois enormes animais, era preciso encher-lhe diariamente o bandulho com erva, feno, palha e nabos: Vendiam cara a força que tinham para puxar o carro, o arado e a charrua. Era este dueto animal e esta trilogia tecnológica que permitia superar a economia do quintal e da horta do jornaleiro munido de enxada com o burro como animal de carga. Ser lavrador não era para qualquer um: As vacas não passavam sem lameiro e sem nabal, sem palheiro e sem cabanal e sem cuidar de lhes chegar o feno e os nabos à manjedoura e, durante o rigor do inverno em que escasseia a erva no campo, não prescindiam de uma enorme caldeira de vianda feita de nabos, batatas miúdas e farelo, servida individualmente a fumegar, logo pela manhã. Era impensável, ao contrário do que hoje acontece com vacas que só têm serventia depois de mortas, que no inverno dormissem no campo. Dormiam na loja, debaixo do sobrado da habitação e requeriam para cama uma facha de palha, que sobreposta dia a dia, se transformaria em estrume. A habitação ficava mais quente com o metano libertado por arrotos e peidos das vacas e com a curtição do estrume. Era, assim, o tempo destas vacas de trabalho: ou enchiam o bandulho, ou regurgitavam e ruminavam ou trabalhavam arduamente revolvendo a terra com o arado ou charrua, ou puxavam o pesado carro carregado com os frutos da terra (sacas de batatas, sacas de centeio, fachas de palha ou feno), o estrume e a lenha, para além de outros inumeráveis produtos. Tudo por caminhos ruins de altos e baixos, num equilíbrio exato de subidas e descidas. Por causa disso, o lavrador tinha de cuidar dos pés fendidos dos seus animais e levá-los ao ferreiro para lhe arranjar os cascos e protegê-los com sapatos de ferro – as ferraduras.
O lavrador, qual batuta de maestro, usava a aguilhada, uma vara comprida e elegante para guiar com precisão o ritmo as mudanças de direção desta jangada terrestre assente na antiquíssima invenção humana: a roda que sem eixo que as unisse de pouco serviria. Na convivência diária do lavrador e junta de vacas, as palavras com a entoação devida, entremeadas de assobios, com acenos e leves toque da vara, resultavam em perfeita sintonia a lavrar ou a puxar o carro. Mas, por vezes, esta bucólica paz, perdia-se ou por impaciência do lavrador ou por incómodo das vacas (o calor, o cansaço, as terríveis moscas que as consumiam, a perda de energia) e, então, os animais, literalmente subjugados, revoltavam-se e o lavrador começava a praguejar e a abusar do aguilhão o que tornava tudo mais feio. Perdido o ritmo e a harmonia era o desconcerto. Se o lavrador não sabia dosear o esforço dos animais as coisas não iriam correr bem. Era preciso, por exemplo saber carregar o carro – carro dianteiro ou traseiro conforme o caminho era mais subida ou mais descida, avaliação um pouco difícil – de que dependia o esforço despendido e o controlo do carro. Nos caminhos, quase todos difíceis, por vezes aparecia um trecho, curto que fosse, a exigir um esforço sobrebovino. Era isso que o lavrador devia ter avaliado porque é aí que a vaca torce o rabo. E, no fim do arranque das batatas, as sacas foram sendo sobrepostas, o lavrador bebera já um copo a mais e, vaidoso, quis mostrar como a sua junta de vacas era forte, tudo aconselhando que a carga fosse feita por duas vezes. O lavrador soltou:
Caratel que não há cá junta de vacas como a minha! Vai tudo de uma vez, nem que a vaca tussa!
Era agosto e o dia terminava com o sol a esconder-se no Carvalhal. Chegado o carro ao primeiro obstáculo com esforço, os animais briosos, a custo, o ultrapassaram. A subida prolongou-se e a junta foi esmorecendo. Quando chegou uma subida mais íngreme, os animais pararam. Bem que os jornaleiros puseram mãos, braços e ombros nas chedas e nas rodas gritando, agora vai! Bem que o lavrador passou rápido do arriba vaca! arriba vaca! Anda, Castanha! Anda, Amarela! ao atiçá-las com o aguilhão, bem que gritou raios e coiriscos e insultos às mães das vacas, com carvalhadas e pragas que atingiram os santos e a Virgem. As vacas amuaram e não se mexeram. Desacoroçoado, continuando o rosário de insultos e pragas, por ter de engolir aquela vergonha que havia de correr nos dias seguintes sobre a Junta das vacas do ti Caratel, mandou que os jornaleiros tirassem metade da carga e das dezasseis sacas ali ficaram oito em espera. A notícia haveria de andar de boca em boca, dita e repetida nos lavadoiros da Ribeira e da Presa de Vale de Castanheiros que as mulheres não lavavam apenas a roupa suja, mas eram as melhores difusoras de tudo o que acontecia, daquilo que lhe acrescentavam e, na falta de assunto, do que inventavam.
(Para ser continuado)
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