Domingo, 2 de Dezembro de 2012
Em memória de Joaquina Santa, primeira distribuidora do correio na Vila
«Chegou enfim o homem das cartas, e a custo conseguiu romper até ao mostrador, onde pousou a maia. O «director», depois de tossir, de assoar-se, de suspirar e de limpar os óculos com umas delongas, que formavam com a ansiedade do povo um contraste desesperador, abriu neumáticamente o saco, extraiu um não muito volumoso maço de cartas, que despejou num cesto de vime, e tomou apontamentos.
Era digno do pincel de um artista aquele grupo de fisionomias, que seguiam ávidas todos os movimentos de mestre Bento. Olhos e bocas abertas, mãos juntas, pescoços estendidos, a cabeça inclinada para receber o menor som, tudo caracterizava profundamente a ansiedade que lhes dominava os ânimos.
Mestre Bento Pertunhas achou a ocasião apropriada para dizer a Henrique : — Pois, senhor, eu nasci para artista, quase sem mestre aprendi a tocar trompa e, não é por me gabar, mas prezo-me de tocar com certo mimo e expressão.
Henrique volveu o olhar para o auditório ; apiedou-o a consternação daquelas fisionomias. Resolveu valer-lhe.
— Tem a bondade de ver se há alguma carta para mim ? — Ah ! pois já as espera hoje ? — Não é provável; porém...
Mestre Bento Pertunhas, em vista disto, começou em voz lenta e fanhosa a leitura dos sobrescritos.
Seguiu-se novo e não menos interessante espectáculo.
A cada nome proferido, erguia-se quase sempre uma voz, às vezes um grito ; estendia-se por cima das cabeças um braço, e, podemos acrescentar, ainda que se não visse, alvorotava-se um coração.
Outros, os não nomeados ainda, olhavam com ansiedade para o maço. que diminuía, e cada vêz mais se lhes assombrava o semblante.
— Luisa Escolástica, do lugar dos Cojos — lia o mestre Pertunhas.
— Sou eu, senhor, sou eu; ai, o meu rico homem! — exclamou uma mulher jovem, apoderando-se avidamente da carta.
— Joana Pedrosa, de Serzedo — continuava — Aqui estou ; será do meu Antônio, senhor ? — disse uma velha, pobremente vestida.
— Será do seu Antônio, será — respondeu o insensível funcionário ; — o que lhe posso dizer é que traz obreia preta.
A mulher, que já tremia ao receber a carta, deixou-a cair, ouvindo aquelas sinistras palavras. Apanharam-lha; e ela, tomando-a, saiu da loja, a chorar lastimosamente.
— Se foi o filho que lhe morreu, não sei o que há-de ser dela — dis;e um dos circunstantes.
— Coisas do mundo ! — respondeu outro.
Estes comentários foram interrompidos pela continuação da leitura.
— João Carrasqueiro.
— Pronto, senhor — bradou um velho.
— A mesada, hem ? — disse Bento Pertunhas, fitando-o por cima dos óculos. — O rapaz não se esquece.
— Deus Nosso Senhor o ajude, que bem bom filho tem saído.
— D. Madalena Adelaide de...
— É a morgadinha, é a morgadinha — disseram a um tempo muitas vozes.
— Agradecido pela novidade ; era cá muito precisa a explicação — disse o Pertunhas : e passando a carta para uma mulher, que era a encarregada de fazer a distribuição a quem a podia gratificar, acrescentou : — Leve-lha a casa.
E prosseguiu: — Augusto Gabriel...
— É o mestre-escola...
— Ora fazem o favor de estar calados ! Esta .. como ele vem por aqui... pode ficar... ainda que... será melhor levar-lha a casa, leve, leve também...
— João Cancela.
— É o João Herodes.
— Esse foi a Lisboa.
— Então, quando vier, que apareça.
— O tio Zé-Pereira ficou de receber as cartas. É compadre dele.
Eu não quero saber de compadrices. O tio Zé-Pereira que se ocupe com o seu zabumba e deixe lá os outros.
A leitura mais ou menos acompanhada destes diálogos prosseguiu, redobrando de momento para momento a ansiedade dos que iam ficando.
Um fundo suspiro, uníssono, melancólico, expressivo de desalento, seguiu-se à leitura do último nome e às poucas palavras, com que o funcionário fechou a tarefa.
— E acabou-se.
Os que ainda estavam na loja saíram cabisbaixos, morosos e com tão má vontade, como se ainda tivessem esperança de comover a inexorável sorte.»
In, A Morgadinha dos Canaviais, Júlio Dinis