Sábado, 23 de Março de 2013
O tempo da minha meninice era um tempo diferente do tempo das meninices que a seguir vieram. Até a palavra menino era eufemismo, porque a palavra usada era garoto. E nesse alvorecer longínquo recordo a minha avó Joaquina Monteiro, sentada ao borralho, no Inverno, ou no balcão, no Verão, a ver quem passava na Praça e sempre com a cesta de verga, um novelo da lã e num dançar de agulhas a fazer a meia.
Fazer a meia era uma espécie de ocupação de tempos livres das mulheres aos serões de Inverno ou que acumulavam com atividades como o pascer dos gados.
Velhinha, espreitava a avó Joaquina no seu adormecer antecedido de orações que, de tanto ouvir, ainda hoje as posso recitar; velhinha de sentidos embotados, de forças gastas, lembro-me das partidas que lhe pregava entrando por casa dentro a dizer que a roubava, e ela:
- Ai Jesus, onde estará a nossa Graça!
A Graça era a minha mãe que lhe dava a lã para fazer a meia. Fez dezenas, centenas de meias. Depois deixou de dar carreira direita. A vista enevoava-se, os gestos trocavam-se, a memória esvaía-se e o tino também. Primeiro, a mãe corrigia os defeitos da tecitura e ela,logo que lhe entregava a obra, previa:
- Já sei que vais botar pitafe.
Escusado procurar no dicionário que o mais próximo que encontra é epitáfio ( sabe-se lá senão é isso mesmo)
A mãe para não botar pitafes, agradecia.
À noite desfazia a meia feita e no dia seguinte a avó Joaquina voltava a fazer. Durante anos. Repetia a história de Penélope, não à espera de Ulisses, mas da morte que se seguiu às orações da noite, enquanto a mãe desfazia, pela última vez, a teia.
Ternurento.
De 3vairado a 26 de Março de 2013 às 22:12
fazer a meia para impedir a gadanha da morte.
belo e triste.
revejo-me nas suas palavras.
obrigado
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