No fundo do fundo da Praça ficava o quintal do ti João Marques onde o sr Tenente e outros ilustres acharam ser o sítio perfeito para implantação do Chafariz, contrariando o parecer do Sr. Presidente da Câmara do Sabugal. Por mim, hei-de ter ouvido as conversas inconformadas de meu pai e o apelo à resignação da minha mãe sobre a expropriação do quintal; hei-de ter ouvido as imprecações de amargura e raiva do meu pai abafadas nas machadadas do corte do abrunheiro e de outras frutíferas que povoavam o quintal; mais tarde, terei ouvido o truca-truca do cinzel dos pedreiros, mestres na arte da cantaria, que bloco após bloco preparavam o corpo que seria a expressão da grande epopeia. Ouvi sem saber o que ouvia. Depois, chegado a este mundo, ao colo da minha mãe, vi sem ver, as pessoas que seguiam os gestos ritualizados do Sr. Tenente a cujo mando, qual Moisés batendo com a vara na rocha, duas torneiras se abriram em jorros de água que abafaram as palmas dos circunstantes.
Tal como na Bíblia: «A água jorrou em abundância, e a comunidade e os animais puderam beber» (Liv. Números 20-21)
Com o tempo o meu pai conformou-se. Antes que o muro branco e caiado saísse dos alicerces meteu uma videira do quintal para dentro do curral cujo tronco engrossou de modo a suportar uma frondosa latada que, além da doçura do fruto, amenizava com a sua sombra o calor dos estios. A videira passou a Videira, a nossa Videira, e a fazer parte da família durante toda a vida dos meus pais mais de quatro décadas. Quem se atrevesse a ser perfeito deveria olhar para esta videira que se despia no Outono para que os raios brandos do sol aquecessem a varanda e se vestia no estio para nos proteger da inclemência tórrida do Verão. Outras lhe sucederam.
E foi nessa varanda debaixo da latada, frente ao chafariz, que aprendi o mundo porque todo, quase todo, o mundo por ali passava. As raparigas namoradeiras, que mais do que matar a sede, vinham esperançadas na aparição do seu príncipe encantado; as criadas dos homens ricos com cântaro na cabeça e um balde em cada mão ou porque os ricos bebem mais do que os pobres, ou porque têm de rentabilizar o tempo dos criados que mal pagam; as mulheres solitárias que espairecem e colhem novidades velhinhas pelo caminho; e a Maria Cuca cuja tontaria já não incomoda ninguém e a quem os garotos fazem a vida negra. A cena é sempre a mesma. Basta atirar-lhe a frase:
- Ó Maria, já te vou roubar o sabonete!
Atira com os baldes de lata, agarra pedras, corre e atira-as à canalha, gritando: - Filhos da puta! Filhos da puta!
Todos se habituaram, ninguém se preocupa com a Maria. Ninguém se preocupa com tontos e doidos.
A água jorra, consoante as épocas do ano continuamente das duas torneiras, de uma torneira só ou apenas mediante a abertura. As pessoas dizem, com vaidade, que nenhum outro povo tem assim tanta água e de tão boa qualidade. Os forasteiros que por aqui passam consolam-se; os peregrinos que demandam a Senhora da Ajuda da Malhada Sorda bebem e abastecem-se para o caminho. Por vezes, a minha mãe oferece um copo.
Também o vivo – mais o gado grosso que o miúdo – não foi esquecido e foi feito um pio encostado ao muro caiado que fizeram ao meu pai. E debaixo da latada eu vejo os homens dando de beber às vacas e aos burros, tantas vezes que eu conheço tão bem o jeito dos donos como os modos dos animais. E conheço o assobio com que cada um incentiva as alimárias a beberem. Os garotos, incapazes de manobrar as torneiras do Chafariz dessedentavam-se no Pio - que grande era - em fraterna partilha com os animais; ou, então, brincavam com a água às massarecas: um montículo de terra com uma covinha que enchiam com água transportada na boca, recipiente mais seguro que as pequeníssimas conchas das mãos. E quando se justavam contas antigas, em público, e as palavras não resolviam o pleito, navalhas e pedras rasgavam os corpos, era ao Pio que acorriam para lavagem do sangue. E como o princípio do sábio Francês Lavoisier aqui tinha integral cumprimento, na Natureza nada se perde tudo se transforma, as sobras das águas eram arrematadas pelo Sr. Fernandinho para regar o Chão da Ponte.
O chafariz chegou quando eu cheguei e estava tão naturalmente ali como passou a estar a Videira do meu pai. Era um belo chafariz e na festa do Senhor dos Aflitos os rapazes solteiros roubavam flores com que o enfeitavam, e as donas das flores, ainda que mostrassem o contrário, sentiam-se felizes por terem sido roubadas as suas flores. Quando aparecia alguém com uma máquina fotográfica era no chafariz que tiravam os retratos.
Depois, gente que não era da vila, e não ouviu as histórias de como o povo ergueu o Chafariz, decidiu em nome da estética urbanística retirá-lo do fundo do fundo da Praça.
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