Sou António Cerdeira Seixas e cheguei à Vila no dia 20 de Dezembro de 1924, faz hoje 90 anos. Nenhum de vós tinha chegado, salvo o meu primo Fernando que chegara há dois anos. Em 90 anos o mundo e a vila mudaram muito e a minha vida também. Quando cheguei não havia estrada, não havia eletricidade, não havia televisão nem rádio, não havia telefone.
Apesar de tudo, cheguei.
No ano em que cheguei, acabavam de construir um cemitério novo com a pedra de uma igreja muito antiga, a Igreja de Nossa Senhora do Castelo; nesse mesmo ano, três meses antes de eu chegar, tinham inaugurado a Capela de Nosso Senhor dos Aflitos, pois, à capelinha acrescentaram o corpo, feito com pedra de uma igreja muito antiga a Igreja do Espírito Santo. Nem uma cruz, em pedra, deixaram a testemunhar o sagrado lugar.
Apesar de tudo, cheguei
No ano em que cheguei, mais de metade dos que chegaram, morreram passados poucos dias, meses ou anos. A vila era uma fábrica de anjos. Não havia, por perto, farmácias, hospitais, médicos, ou Segurança Social. O pão era escasso e negro como o diabo que o amassou.
Apesar de tudo, sobrevivi.
Durante estes 90 anos muitos chegaram, muitos partiram.
Ainda aqui estou convosco, enquanto Deus quiser.
Todos nós temos a nossa história. A minha vai longa, é um livro com muitos capítulos, com muitas páginas e as infinitas linhas da minha vida cruzam-se com as vossas próprias linhas de sangue, de palavras e de obras. O privilégio de nascer na vila, de viver na vila, de morrer na vila é poder ter tantos parentes, ter tantos vizinhos, ter tantos amigos.
A minha mãe, que perdi antes de completar quatro anos de idade, corria a primavera de 1928, chamava-se Ana. Tinha três, irmãs: a Filomena (mãe da Leonor que casou com o meu irmão César); A Justina, mãe do Xico Cunha; a Maria. Tinha dois irmãos o Francisco (1891-1965) e o Manuel (1891-1965). Todos eles filhos de José Cerdeira, pastor, e de Isabel dos Santos, tornaram-se numa das famílias maiores da Vila que enquanto a emigração não chegou se cruzaram com os diversos ramos de outas famílias, por regra, da vila também: Com Monteiros, Cerdeiras, Caramelas, Silvas, Lavajos, Fonsecas, Proenças, Santos, Cunhas, Seixas, Pratas, Badanas. Por via dos Cerdeiras, para além da costela de Eva, terei uma costela galega, se verdade for que os Cerdeiras da Galiza aqui vieram parar.
O meu pai, José Seixas (1884-1948), era filho de João António Seixas, com a profissão de caiador, e de Ana Monteiro (1852-1917) que tiveram ainda, a Isabel e o Bernardo, gente de que só os mais velhos se lembram. Casou com a minha mãe no dia 5 de Fevereiro de 1916, ele com a idade de 32 anos e ela de 26 anos. Quando cheguei já tinha cá o irmão César e a irmã Isabel. A Hermínia chegou e foi antes de mim. Depois mais uma Hermínia que chegou e foi depois de mim. Mais dois anjinhos a aumentar a corte celestial. Todos Cerdeiras de mãe e Seixas de pai.
A mãe morreu. Não me lembro. Meu pai precisado de mulher para ele e de mãe para os filhos, casou em Novembro de 1928 com Mercês Dias, de 27 anos, natural de Badamalos. Nasceu, então, a Maria, o Adriano e o João.
A esse tempo não havia meninos, mas garotos; não havia educação mas instrução. Os pais davam a criação que, para além do sustento, significava tornar os filhos bem-mandados o que se fazia seguindo o dito popular, que fazia lei na ausência dela, Quem dá o pão, dá o pau, e se o primeiro andava arredio, o pau estava sempre à mão. Os mal-mandados eram malcriados que a desobediência sempre foi a causa da desordem e por mor dela é que andamos neste vale de lágrimas. A instrução primária na escola seguia o mesmo objetivo – ser bem-mandado – e seguia o mesmo método – com a imprescindível régua, que com regra e régua se haviam de fazer gente bem mandada.
Devo confessar que ainda que me tenham aplicado o método com rigor, o objetivo ficava muito aquém, o que levava sempre ao reforço do método.
Os anos passavam e, quase sempre, com mais pau e menos pã, ia crescendo à pressa e pouco, o suficiente para aprender o essencial à vida, procurar o bem e fugir do mal, baseado em estratagemas e artimanhas, em safar-me desta que depois logo se vê, porque enquanto o pau vai e vem folgam as costas, uma filosofia prática que não havia tempo para cogitações. A artimanha era para os filhos do deus dará a mais necessária de todas as artes, a única mesmo que resultava na luta pela vida.
Mas, porque filho de peixe, sabe nadar, ainda que contrariado, lá ia, ajudar o meu pai caiador, abranger-lhe isto e chegar-lhe aquilo, fazer-lhe um recado a este e outro aquele, ir ao comércio comprar uns pregos caibrais, com umas lamparinas pelo meio, por mor de não fazer as coisas como lhe era dado. Foi assim que de garoto passei a rapaz e, mais, do que pensava, aprendi as regras do ofício de meu pai, mesmo as que eram segredo seu: a composição das cores. Sempre que chegava esse momento, para ele um ritual sagrado, havia de arranjar maneira de que eu não visse e me afastasse do local e do momento. Umas vezes espreitei, outras vezes a D. Balbina minha protetora tomava nota para depois me transmitir as doses, sequências, jeitos e formas de confeção que faziam o milagre da cor, em mistura de que resultavam cores inigualáveis. Quem disto duvidar que dê um passeio pela Rua de Baixo e que atente nas sancas dos beirais deteriorados, nas orlas de janelas a desfazerem- se, no reboco gasto pelo tempo a desprender-se … e lá está a cor como se imanente fosse aos materiais.
Era isto que o ti Zé Seixas temia, que alguém se botasse a fazer tintas como só ele fazia.
- Nem o meu Tonho algum dia o saberá! Nem o meu Tonho! Dizia para si e disse-o aos amigos um dia em que o vinho foi mais generoso.
Disse-o, em voz baixa, ao Zé Duarte, Sapateiro e ao Albino Leonardo, Latoeiro, uma trindade cujo deus das horas vagas era baco, o único a que verdadeiramente adoravam naquele altar que era a taberna do senhor António Gata. Ali, alongavam as horas como se o mundo e a vida passassem a uma dimensão transcendente e só ali encontrassem perguntas e respostas incomuns. O Albino dizia, solene, em parte adiantada do cerimonial:- É do vinho – digo-vos- é do vinho que virá a salvação da humanidade. Convicto da sua tese, resolveu proceder ao surribamento de terras para plantação de vinhas, tanto quanto o amealhar do ofício e a bondade da sua Zabel lho permitiam. E do muito vasilhame que lhe saía das mãos a sua preferência ia para os cântaros para medir e transportar o líquido salvífico e para os funis grandes para o introduzir em enormes tonéis. Sem vinho, nem verdade, nem salvação! In vino veritas
Para o Zé Duarte era diferente. O mundo é o que é, mesmo quando o vinho o inspira, o mundo não deixa de ser o que é. O melhor que há a fazer é aceitá-lo e ajeitarmo-nos a ele. E numa filosofia feita de evidências não pensadas dizia que as imperfeições e as asperezas da vida é que são a razão de haver ofícios como o dele. E virando-se para o Leonardo que era homem que vasculhava livros antigos e outros de sabedoria oculta, como o Livro dos Engrimanços do S. Cipriano, questionou-o sobre como é que Adão e Eva podiam sair do paraíso para a terra, sem caminhos feitos, e sem calçado que os protegesse de espinhos e abrolhos. Não iriam muito longe, a menos que a Terra ficasse logo ali ao virar da esquina.
Deixados os éteres tabernais, baixado à realidade banal e brutal, o que o meu pai temia era a concorrência, porque eu, garoto a caminho de rapaz, para ganhar algum, fazia os ajustes mais baixos e, não me tendo instruído muito na escola, depressa a vida me ensinou a fazer contas sem prova dos nove mas com prova real. Claro que as minhas tintas não eram as tintas do ti Zé Seixas, mas quem se interessou pelas tintas do ti Zé Seixas senão ele mesmo? Estou em crer que meu pai era um artista capaz de perder tempo e dinheiro a fazer pintura para olhos que a não apreciavam. Há pinturas dele no coro da Igreja de S. Pedro, alguém repara nelas? A pintura do Escudo de Armas na parte inferior do coro, que eu lhe vi fazer, taparam-no, sem cerimónia, com o para-vento da porta principal. Meu pai, sim, era um artista. Um artistão, diria o Zé Vicente, uma alma cujo génio ficou encolhido no emaranhado das circunstâncias atrofiadoras do espírito criador.
Eu sou um artesão com gosto na obra bem feita, mas sem paciência para esperar por amanhãs longínquos. Impaciento-me se o caldo demora a chegar à mesa, se a fruta fica serôdia no amadurar. Por isso, porque o sol não tem pressa tanta vez me levantei antes dele. Sei que é preciso dar tempo ao tempo mas desgosto-me que assim tenha que ser. Talvez porque tive que me fazer à pressa: se ficava para trás ninguém me esperava, caída a noite ninguém me procurava, se não comia ninguém se ralava. Assim que pude libertei-me do mando do meu pai a quem servia a troco de quase nada, justando um reboco aqui, uma taipa ali, uma pintura acolá, tudo coisas de pequena monta mas que me permitiram dar cumprimento à maldição bíblica do “ganharás o pão com o suor do teu rosto” e ser dono de mim mesmo, pela primeira vez, o gozo de ter dinheiro, de poder dispor dele, de comprar um espelho e um pente, uma caneta de tinta permanente, um relógio, de comprar uns sapatos, uma navalha. Mais do que tudoisso, um lenço para oferecer à Ana. Sim, à Ana filha do amigo de meu pai, o Zé Duarte, o ti Zé Sapateiro.
A amizade descobri-a desde cedo na partilha da condição de outros garotos como eu, filhos do deus dará, que era o único que cuidava de nós. Na ausência do que de nosso pudéssemos partilhar, congeminávamos idas aos ninhos, subidas a sítios impossíveis, desafios de cuspir longe e de mijar alto, de atirar pedras mais longe, cada vez mais longe, de fazer uma barrela ao Pantaleão ou de atentar o tonto de Valongo. E, claro, mais do que ir ao rebusco, roubar fruta pelo prazer de roubar e pelo prazer da fruta. Nada há que saiba tão bem como fruta roubada.
O amor é coisa mais complicada que a amizade. Não se sabe quando vem, não se sabe como chega: talvez seja uma chispa nascida de um cheiro, de uma cantiga atirada ao ar, ou, mais provável, de um olhar. Aceso o lume será, ora brando brasio ou labareda intensa, ou incêndio indomável reduzindo tudo a cinza. E a cinza pode parecer apenas cinza, mas, por vezes, há uma brasinha que restou escondida e que, acarinhada, reacende a chama do amor. As vidas longas, se são vidas vividas, passam por tudo, por isso,
Apesar de tudo, estou aqui.
(aniversário dos 90 anos comemorado no Centro de Dia)
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