(Fotografia de Sara Rego)
A casa da minha avó Isabel era junto do Muro, na vizinhança contígua da ti Olímpia e da ti Rosalia e, do lado oposto ao da rua (a rua Direita a que os desentendidos trocaram por Rua do Arco) morava a ti Ana do ti Manel Valério. Mal aprendi a andar e, consolidado o modo de descer as escadas do balcão que davam à rua, que era onde começava o mundo, fui explorando o chafariz que, torneiras sempre abertas, alimentavam o pio onde, burros e vacas, ao som do assobio dos seus donos, desfiando melodia própria para o ato, se dessedentavam. Nós garotos pequenos, na impossibilidade de chegar ao jorro das torneiras atrombávamos no pio. A pouco e pouco o mundo ia- se alargando até à Praça e ao Pelourinho e até à casa da avó Isabel que se havia de tornar um lugar mágico por mor de uma mistura dos sons do ofício, da voz da avó, dos cheiros da cozinha e da habitual fatiga do trigo espanhol. Neste cirandar pelas ruas ia- me dando a conhecer às gentes que por lá moravam há muitos anos e eu todos os dias lhes ia registando os rostos, os gestos os feitos e os feitios, as coisas que transportavam e o cão, o burro e a cabra que os acompanhavam. As cenas repetiam- se diariamente com o Ti João Valente sempre em cima da burra a comer um naco de pão, o ti João Costa de chapéu de feltro com um sacho comprido ao ombro, o ti Salazar de chapéu e garrafa debaixo do braço e a saudação pronta ‘ bôs dias lhe dê Deus’, e o António tão borracho a ir de parede a parede e a andar de gatas ao atravessar a ponte. Era um mundo de gente muito igual, declinada em infinitas diferenças que me maravilhavam. Decorei-lhes a voz e a veste, as medidas e os modos, a cor e o coração, o andar e as andanças, a palavra e o silêncio. Aprendi-os de cor tal como a vida sabendo-a sem saber. E hoje sabe- me bem sabê-lo e acoito em mim estas ternas memórias do menino de cinco anos que um dia de regresso da viagem à casa da avó os pés se enterravam tão fundo no manto branco de neve que a mão direita de meu pai teve de me socorrer. Corria o Inverno de 1956.