Sexta-feira, 3 de Junho de 2016

O BURACO – PARTE 3

           

IMG_0341.JPG

Na casa do ti Jerómino, terminavam as casas do povoado de quem saía pelo Buraco, no tempo em que havia grandes sermões que, invariavelmente, mostravam a miséria da condição humana e pintavam de cor de fogo o inferno e o céu com resplendor de luz perpétua; em que na Misericórdia se cantava, em gregoriano, a ira de Deus; em que os lavradores semeavam tapadas de pão, os pedreiros levantavam paredes, os ferreiros aguçavam os picos dos pedreiros e as relhas dos lavradores; os pastores dormiam com as ovelhas nas noites quentes de verão nas terras centeeiras que a merda do seu  gado havia de alimentar o pão semeado pelos lavradores; em que os  moleiros tornavam farinha o grão de centeio no rodízio fabricados pelos carpinteiros que moviam as mós talhadas pelos pedreiros; em que as mulheres dos homens de todas as profissões amassavam a farinha e a tendiam em pães que, poisados em tabuleiros, à cabeça, levavam aos fornos da Quelha, da Praça ou do Cimo da Vila; em que em todas as mesas, branco ou escuro, à farta ou doseado, só ou com peguilho, acompanhado de vinho ou de água o pão ocupava o lugar principal. Tudo pode faltar menos o pão. Foi o pedido que todos, desde crianças, aprenderam a fazer a Deus: ‘O pão nosso de cada dia nos dai hoje’. Que o senhor da terra, servo de Deus, havia de chegar no mês de Setembro para recolha de tudo o que sobrava da fome.

O pequeno Tonho, sem mãe desde os quatro anos e com o pai mais ocupado em arranjar mulher onde fazer filhos que criar os que fizera, ficara entregue à Segurança Social que, ao tempo, se encarregava de todos os deserdados e que dava pelo nome de o deus dará. Ora, ao contrário de Deus, o deus dará era, por natureza, um faz de conta, pois o que acontecia, acontecia ou não acontecia independentemente dele. Não adiantava, nem atrasava um deus assim e Deus também não se importava de um deus sem importância. Falecida a mãe do Tonho, o garoto ficou ao deus dará e para mitigar o mal de ter um deus assim a cuidar de si, foi-se animando por mor de não lhe faltarem companheiros que tendo ficado ao deus dará lhe continuavam fiéis servidores pela vida fora. irmanados na adoração do seu deus, aprenderam a andar sempre à margem dos que tinham um Deus a sério. Se iam à Igreja, não tinham que estar onde estavam os filhos de Deus, não tinham que cumprir com rigor os preceitos da Santa Madre Igreja, encontravam sempre um lugar mais escondido, mais distante. Os seus passos tinham uma geometria errante e emaranhada ao sabor dos ventos. De certa vez, o António mais o Bernardino, fintaram a vigilância do padre Zé Batista e enfiaram-se no coro da Igreja. Rezados os cinco mistérios dolorosos – ao sr padre dava mais jeito os dolorosos - já eles dormiam como os barrocos da Fraga, embalados pela Salve Rainha, mais umas Avé-Marias avulsas pela conversão da Rússia, as jaculatórias usuais e o ámen final.

 O ti Manel Junça, empunhado o pavio, apagou uma a uma as velas, as do altar-mor, primeiro, e, depois, as dos altares laterais tomando a escuridão conta do espaço todo, até à crescente afirmação do treme luz da lâmpada do Santíssimo. As beatas, embrulhadas nos xailes e lenços pretos, olhos poisados no chão, continuando a sibilar orações e rezas, saíam contrariadas como se aquela fosse a sua única morada. O Junça fez ranger langorosamente a porta de ferro, deu duas voltas com uma chave tão grande e tão lisa que bem podia ser a chave da porta do Céu. Enrolou o tabaco no papel e acendeu o cigarro que, às vezes, o distraía, outras vezes, o carregava de pensamentos. Desta vez deu consigo a perguntar-se se Deus não teria em grande conta o trabalho de um sacristão, que a ele, Junça, o obrigava a deitar-se depois de todos porque tinha de subir à torre para tocar ‘às almas’ e levantar-se antes de todos para o toque das ‘Avé-Marias’. No princípio, quando se casara com a Maria Prata, dela ouvia os bitafes de mulher que não conformada com a concorrência que os sinos lhe faziam, desatava:

- Ó Manel, parece que se tu no tocasses o sino nem o sol nascia, nem a noite acontecia!

Lembrou-se do remoque da Maria e perguntou-se:

 - Atão, se no houvesse sinos, se no houvesse sacristão que os tocasse como é que esta gente se entendia? Até os galos só cantam depois de eu tocar as Ave-Marias e depois de tocar às Almas. E foi para o Adro saltando e dizendo: Eu sou Deus! Eu sou Deus! Sou importante! Que seria do padre se eu não tocasse os sinos? Sim que seria uma igreja sem gente? E nisto, atreveu-se: Que seria de Deus sem fiéis que o adorassem? Que seria Deus sem mim? De repente assustou-se pela temeridade que acabara de pronunciar. Arrependeu-se, logo. Mas lá que fazia sentido o que dissera, lá isso fazia.

- Que Deus me perdoe! Mas se eu no tocasse os sinos, comé quera?

Nem o pai do Tonho nem a mãe do Bernardino deram pela falta dos garotos, que mal o Junça deu à chave se apressaram a sair, descalços, nas costas do sacristão.

A casa do ti Jerónimo foi durante muitos anos a última. Se, ao tempo, houvesse placas identificadoras do início das povoações a indicar o nome das povoações era ali que estaria: VILAR MAIOR.

 Mas naquele tempo ninguém ia além da Vila e todos os que lá iam não precisavam de o ler e a maior parte nem ler sabia. Durante muitos anos o caminho esconso tornado estrada de terra batida, feita para veículos motorizados, continuou a ser um caminho de gente e de gado. Se havia coisa desnecessária para o povo era uma estrada que os ligasse ao mundo que para a maior parte o mundo acabava no sítio onde o céu poisava na terra, lá até onde a vista enxergava. Para que lhes servia uma estrada sem veículos motorizados? Se, por necessidade ou acaso da vida, alguém tinha que ir mais longe do que a distância que a pé ou de cavalgadura se pode fazer num dia, teria de ir ao Noémi e tomar o comboio de cuja existência sabiam os que nunca o viram pelo silvar que nos campos se ouvia se o vento estivesse de feição.

Mas havia gente aristocrática que vivia em Lisboa, não vivia na vila mas que sem lá estar, mandava nela por mor da maior parte das terras, sempre as melhores, serem suas, lá vinha de visita para descansar da canseira da cidade e, sobretudo, para receber vénias, salamaleques e, sobretudo as rendas, em géneros ou dinheiro, através dos seus feitores. Vinham em Setembro, o mês de todos os milagres. Os filhos do deus dará, primeiro que ninguém, se apercebiam da chegada do senhor e da senhora mais dos meninos e das meninas que, por caridade, por divertimento, por tradição deitavam à arrebatinha rebuçados e moedas de tostão como quem deitava parcos grãos de milho a galinhas esfomeadas que mais esfomeadas ficavam. À senhora e demais madamas era-lhes servido chá com galhetas espanholas enquanto o caseiro depois de beberem um Porto lhe mostrava as enormes arcas de centeio, as tulhas de batata e de feijão e os enormes toneis de vinho, seguindo-se depois a escrita das vendas de centeio, de feijão, de batatas, de vinho, dos borregos, cabritos e vitelas e das rendas a dinheiro.

 - Está tudo escriturado, senhor Doutor.

E, dizendo isto, foi ao fundo de uma mala de onde tirou um cofre que, encontrada a chave, abriu.

- Estão aqui mil e cem contos!

(…)

publicado por julmar às 17:44
link | comentar | favorito

.Memórias de Vilar Maior, minha terra minha gente

.pesquisar

 

.Novembro 2024

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
12
13
15
16

17
18
19
20
21
22
23

25
26
27
28
29
30


.posts recentes

. Requiescat in pace, Júlio...

. Requiescat in pace, Quinh...

. Famílias da Vila - Osório...

. Rua Direita, quem te troc...

. Requiescat in Pace, José ...

. Os Rios da Minha Infância

. Liber mortuorum

. Centenário da capela do s...

. Requiescat in pace, Manue...

. Paisagem humana - A Vila ...

.arquivos

. Novembro 2024

. Outubro 2024

. Setembro 2024

. Agosto 2024

. Julho 2024

. Junho 2024

. Abril 2024

. Março 2024

. Fevereiro 2024

. Janeiro 2024

. Dezembro 2023

. Novembro 2023

. Outubro 2023

. Setembro 2023

. Junho 2023

. Maio 2023

. Abril 2023

. Março 2023

. Fevereiro 2023

. Janeiro 2023

. Dezembro 2022

. Novembro 2022

. Outubro 2022

. Setembro 2022

. Agosto 2022

. Julho 2022

. Junho 2022

. Maio 2022

. Abril 2022

. Março 2022

. Fevereiro 2022

. Janeiro 2022

. Dezembro 2021

. Novembro 2021

. Outubro 2021

. Setembro 2021

. Agosto 2021

. Julho 2021

. Junho 2021

. Abril 2021

. Março 2021

. Fevereiro 2021

. Janeiro 2021

. Dezembro 2020

. Novembro 2020

. Outubro 2020

. Setembro 2020

. Agosto 2020

. Julho 2020

. Junho 2020

. Maio 2020

. Abril 2020

. Março 2020

. Fevereiro 2020

. Janeiro 2020

. Dezembro 2019

. Novembro 2019

. Outubro 2019

. Setembro 2019

. Agosto 2019

. Julho 2019

. Junho 2019

. Maio 2019

. Abril 2019

. Fevereiro 2019

. Janeiro 2019

. Dezembro 2018

. Novembro 2018

. Outubro 2018

. Setembro 2018

. Agosto 2018

. Junho 2018

. Maio 2018

. Março 2018

. Fevereiro 2018

. Janeiro 2018

. Dezembro 2017

. Novembro 2017

. Setembro 2017

. Agosto 2017

. Julho 2017

. Junho 2017

. Maio 2017

. Abril 2017

. Março 2017

. Fevereiro 2017

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

. Novembro 2006

. Outubro 2006

. Setembro 2006

. Agosto 2006

.O encanto da filosofia, o badameco

. Liber mortuorum

.links

.participar

. participe, leia, divulgue, opine

blogs SAPO

.subscrever feeds